“Bets” – roletas perversas
Por Carlos Alberto Di Franco
Recente pesquisa do Ministério da Justiça e Segurança Pública, obtida com exclusividade pelo Estadão, revelou o que muitos já intuíamos: as apostas on-line, muitas vezes travestidas de entretenimento esportivo, são o novo jogo do bicho. E com uma agravante: a facilidade tecnológica as transformou em armadilhas ao alcance de todos, inclusive – e especialmente – dos mais vulneráveis. Os dados falam por si. Mais de um terço dos apostadores brasileiros sofre algum grau de transtorno relacionado ao vício em jogos. O número é alarmante. Mas mais assustador é constatar que os adolescentes figuram entre os mais atingidos. As “bets” não apenas capturam a atenção dos jovens: elas moldam seus comportamentos, seus sonhos e sua visão de sucesso. Estamos diante de uma nova epidemia silenciosa. Ela não se espalha por vias respiratórias, mas pelos dedos que deslizam freneticamente sobre as telas dos celulares. E o contágio é tão eficaz quanto perigoso. O mecanismo é perverso. As plataformas operam com algoritmos refinados, desenvolvidos para maximizar o tempo de permanência dos usuários e incentivá-los a continuar apostando, mesmo diante de perdas sucessivas. O reforço intermitente – uma vitória aqui, uma perda ali – atua como um gatilho psicológico, semelhante ao que ocorre com drogas. Não é exagero. Diversos estudos já comparam o vício em apostas on-line ao vício em substâncias psicoativas. A dopamina, neurotransmissor associado ao prazer, é liberada em níveis elevados durante as apostas, criando dependência e levando o indivíduo a buscar, compulsivamente, novas jogadas.
E onde está o Estado? Em muitos casos, ausente ou, pior, conivente. A legalização e regulamentação das bets vêm sendo tratadas com leviandade por setores do poder público. O discurso é sedutor: geração de empregos, arrecadação de impostos, fomento à indústria do entretenimento. Mas por trás dessa retórica aparentemente progressista esconde-se um pacto com a irresponsabilidade. Nenhuma política pública séria pode ignorar os danos sociais e psicológicos que as apostas on-line causam. Não se trata de moralismo – trata-se de saúde pública, de proteção à infância e à juventude, de responsabilidade intergeracional.
Os adolescentes, em especial, são as grandes vítimas dessa nova cultura da aposta. Ainda em formação cognitiva e emocional, são alvos fáceis de campanhas agressivas de marketing. Jogadores de futebol, influenciadores digitais, youtubers e até jornalistas esportivos servem de garotos-propaganda para as plataformas. A mensagem é clara: apostar é descolado, é moderno, é sinônimo de estar “por dentro”. O jovem, já vulnerável à pressão social, se vê pressionado a participar, a experimentar, a “não ficar de fora”.
A isso se soma a naturalização do vício. A linguagem das apostas se infiltrou na cultura popular, nas transmissões esportivas, nos grupos de WhatsApp. Apostar se tornou um hábito cotidiano, uma atividade corriqueira, quase tão banal quanto tomar um café ou assistir a um jogo. Esse processo de normalização é um dos mais perigosos porque, ao tornar o vício algo aceitável, a sociedade perde sua capacidade de reação. Perdemos o senso de alerta, o instinto de proteção, o compromisso com a formação ética dos nossos jovens.
Não se pode falar de liberdade sem falar de responsabilidade. Defender o livre arbítrio é um princípio democrático. Mas é preciso garantir que as escolhas sejam feitas com base na informação, na maturidade e na consciência. O que vemos hoje é o oposto: escolhas impulsionadas por propaganda enganosa, por ilusões de riqueza, por mecanismos de manipulação emocional. Não há liberdade onde há vício. Não há autonomia onde há dependência.
O Brasil precisa despertar. É urgente estabelecer limites claros para a atuação das plataformas de apostas. Regulamentar, sim – mas com rigor, com ética, com o compromisso de proteger os mais fracos. É preciso criar barreiras para impedir o acesso de menores de idade, exigir transparência nos algoritmos, limitar os valores que podem ser apostados, coibir a publicidade agressiva. É necessário, sobretudo, retomar o controle sobre o discurso público: dizer claramente que a aposta não é um caminho de sucesso, mas uma estrada para a frustração.
A imprensa tem um papel decisivo nesse processo. Os veículos de comunicação deveriam liderar uma cruzada ética contra a banalização do vício. É hora de recuperar a vocação pedagógica do jornalismo, sua capacidade de formar consciências e orientar comportamentos.
É preciso ensinar os jovens a lidar com a frustração, a valorizar o esforço, a cultivar a paciência. Precisamos reabilitar o mérito como valor, o trabalho como caminho e a esperança como virtude. Só assim poderemos romper o ciclo da ilusão que as bets alimentam.
O jogo do bicho era ilegal, mas visível. As bets são legais, mas invisíveis. Penetram nossas casas, nossas rotinas, nossos lares. E, como todo vício silencioso, elas corroem por dentro. O Brasil não pode se render à lógica da aposta. Nosso futuro – e, sobretudo, o futuro dos jovens – vale mais do que isso.