Os cabelos de Neymar e o equívoco entre caráter e desempenho que atrasa nosso futebol
Ao transferir para Neymar a responsabilidade pelas glórias e fracassos da seleção, ignora-se o principal aspecto do futebol: sua humanidade.
Com qual cor de cabelo Neymar irá jogar contra a Costa Rica? Pode parecer absurdo, mas a dúvida parece mais presente nas conversas de bar e discussões de futebol que futebol, em si. O desempenho da seleção brasileira não deixou ninguém satisfeito. Um empate com a Suíça pode parecer uma vergonha, se comparada a tradição entre as duas seleções. A culpa pelo fiasco? O cabelo dele, Neymar.
Todo jogo da seleção brasileira é um prato cheio para entender que o comportamentos do torcedor tem como linha conjunta o caráter como explicador do desempenho. Quer ver? Se vence, teve atitude e caráter. Se perde, falta comprometimento e sobra apatia.
O brasileiro vê na atitude e nas qualidades pessoais todas as explicações para as ações dentro do jogo. Fazemos uma confusão clássica: caráter e desempenho. Eles não são sinônimos. Caráter é a firmeza e coerência de atitudes, a linha condutora na mente de alguém. Desempenho é o comportamento de um indivíduo diante de uma meta ou modelo. O futebol funciona sobre o prisma do desempenho. Ao entrar em campo, espera-se do jogador o cumprimento de algumas ações diante de um molde – a equipe. Se seu papel é chutar, driblar e cruzar, e ele faz isso bem, desempenhou bem.
Se Neymar não driblou bem, não lhe faltou caráter, lhe faltou desempenho. Futebol é um esporte. Um jogo. O drible é uma ação do jogo. Para esta ação acontecer, é preciso eliminar um adversário. Depois, entendimento técnico e tático – como driblar? Quando e onde? Por fim, recursos mentais, como constância, equilíbrio e calma. Nada disso envolve o caráter. Porque o futebol acontece sob o peculiar tecido do esporte, onde há fatores diversos que influenciam nas atitudes: adversário, ansiedade, pressão, medo, expectativa, fracasso, sucesso, velocidade, crença, fé.
De onde vem essa ideia de que o caráter se mistura com o desempenho? A resposta está na nossa própria história como país. Em “Casa Grande & Senzala”, o historiador Gilberto Freyre traçou um tratado sobre a sociedade brasileira. A origem da confusão se dá a um imaginário criado na casa grande. O Brasil colonial tinha grandes dimensões, o que impossibilitava a criação de um governo sólido e forte. A casa grande era o mais próximo de uma instituição. Seu comandante máximo, o senhor de engenho. Um pai. Ao redor dela, orbitavam uma série de pessoas. Elas dependiam da obediência ao senhor de engenho para sobreviverem.
Durante 300 anos, a esfera pública e privada foram as mesmas. O senhor de engenho era pessoa e instituição ao mesmo tempo. Ao fim da escravidão, a ideia pegou. Já ouviu falar de coronelismo? Tá aí uma prova. Ou de populismo, configurado na imagem de governantes carismáticos e bonitos com promessas de super-homem? Outra prova. O brasileiro confunde pessoa com instituição ao mesmo tempo. Acredita no que Freyre chama de “Messias”, o salvador da pátria, a pessoa que irá resolver todos os problemas com seus poderes de senhor de engenho. Também nos comportamos assim ao cobrar da presidente o que é do senado, dos deputados ou do voto, por exemplo.
Mesclar privado e público também provocou um outro traço de comportamento. No livro “Raízes do Brasil”, o historiador Sérgio Buarque de Holanda bolou o conceito de “homem cordial”. Por não ter uma diferença entre o que é seu e o que é do outro, o brasileiro é regido regido por aparência, pois não suporta a individualidade. Só encontra sentido em si quando se expande para a vida social. E julga os outros. E como julga! Somos penta em oferecer um cafezinho e falar mal pelas costas. Em fazer grupos de whatsapp para falar mal dos outros. Tem coisa mais brasileira que a fofoca?
É por amar tanto o que é do outro que o Brasil é o segundo país com mais usuários no Facebook. Tem coisa mais tentadora que rolar o dedo e saber da vida do outro? Julgar o cabelo do Neymar segue a mesma lógica. É um impulso, quase uma necessidade de invadir sua vida e encontrar lá algum sentido. Ou melhor, a explicação pro jogo ruim. Confundimos o público do Neymar (seu desempenho) com o privado (seu caráter). Depositamos nele as esperanças do hexa como se ele próprio fosse toda a seleção.
Freyre e Holanda se conectam no futebol. O Brasil importou a fusão entre público e privado para o jogo. O senhor de engenho virou o craque do time. Aquele que tudo resolve, como as pernas de garrincha. O restante orbita e se sacrifica para o bem do craque. Uma troca: o senhor do engenho, ou melhor, o talento dá os gols, a sociedade marca pelo mais talentoso. Quem nunca ouviu que é um absurdo que os melhores se ferrem na marcação? A ideia de que trabalho é sacrifício reflete uma sociedade individualista, que só pensa em si própria ou em seu núcleo (a casa grande) e esquece instituições como governo, constituição ou leis. Sabe aquele papelzinho jogado no lixo porque “você está com pressa”? Pois bem, é isso.
Acontece que o craque não joga sozinho, e entender o jogo envolve entender o desempenho. Como o jogador atua, dentro de um molde, sob determinadas condições. É esquecer o que a pessoa é, e sim o que a pessoa faz. O “ perdeu porque não teve atitude” é uma patota. No português simples, não faz o menor sentido. Distinguir o que é jogador e o que é pessoa envolve empatia. A capacidade de se colocar na mente do outro. Como o escritor americano David Foster Wallace diria, é a “liberdade de ver os outros”.
Tudo o que você viveu e de que se lembra tem apenas um protagonista: você mesmo. A empatia é dura porque exige deixar nossas crenças e verdades de lado. É abandonar o ego e ver o outro de forma pura. É entender o humano atrás do jogador, a criança atrás do adulto. Empatia nos faz distinguir o Neymar público do privado. O privado, só a ele interessa. O que ele faz fora do campo é problema do indivíduo – dele, e só dele. Assim como seu cabelo.
Mas dentro de campo, os apontamentos sobre um ou outro jogador são do desempenho. Tema para outro texto. Abrir a cabeça e largar certas verdades, tão repetidas, é ver o que o futebol tem de mais precioso: sua humanidade. Feito por pessoas, para pessoas.
fonte: G1