Opinião Jogo Aberto – 31 de Maio de 2018
República rodoviarista do Brasil.
Uma greve de caminhoneiros não seria capaz de parar o Brasil na década de 1950. Pessoas continuariam se deslocando pelas cidades; o abastecimento de produtos seria mantido; milhões de animais não estariam sendo sacrificados; não estaria faltando insumos em hospitais, escolas, postos de saúde, etc.
Há legitimidade em se opor à escalada dos preços dos combustíveis, mas o impacto descomunal da greve coloca em questão nossa extrema dependência de estradas, asfalto, pneus e derivados de petróleo. Vale lembrar que nem sempre foi assim: nos tornamos uma república rodoviarista ao longo do século 20, a despeito da ampla malha ferroviária e do imenso potencial hidroviário que o país já teve.
Em artigo de uma revista , reconta a triste história de desmonte da Rede Ferroviária Federal, que já foi a maior empresa pública do país, à frente da Petrobrás. Nos anos 1950, os trens intermunicipais no Brasil transportavam cerca de cem milhões de passageiros por ano – e hoje não chegam a transportar 2 milhões em suas poucas linhas.
A história passa pela construção desenfreada de estradas, tornada pauta nacional por Juscelino Kubitschek e levada a cabo nos anos de chumbo, junto ao abandono paulatino das ferrovias. “No afã privatizante do governo FHC, o sistema ferroviário do país foi completamente desmembrado e concedido à iniciativa privada, quase sem condicionantes de interesse público”, relembra a autora.
Nas mãos de poucas empresas ligadas à mineração, nossa malha ferroviária restante ficou restrita à exportação de minério, grãos e biocombustíveis. E a maior parte do transporte de cargas e passageiros que estrutura a dinâmica interna do Brasil foi para as rodovias. Esse modelo onera a logística do país, gera grande impacto ambiental e milhares de mortes. Estima-se que caminhões gastam cerca de dez vezes mais diesel do que trens para transportar a mesma carga; e que mais de 10.000 pessoas morrem por ano no Brasil em acidentes envolvendo caminhões.
As cidades seguiram na mesma toada. Um estudo do presidente da Associação Nacional de Transporte Público, a ANTP, compara São Paulo em 1950 com Belo Horizonte em 2010: com 60 anos de distância, as duas cidades tinham a mesma população (cerca de 2,4 milhões) e a mesma área territorial. No entanto, São Paulo tinha 70.000 veículos em 1950 e, Belo Horizonte, 1,4 milhão em 2010.
O mesmo número de pessoas vive e se desloca na mesma extensão territorial com 20 vezes menos carros. Como isso é possível? A diferença é que São Paulo tinha, em 1950, mais de 600 quilômetros de trilhos de bondes. Bondes que tinham tarifas populares, andavam com gente saindo pelas janelas, não poluiam o ar e geravam pouquíssimos acidentes. Com o espraiamento das cidades, que, sempre serviu a proprietários que têm seus terrenos valorizados, a dependência petrolífera se acentuou cada vez mais. Além disso, a produção de alimentos foi se distanciando dos polos de consumo, passando a ser feita em grandes monoculturas, altamente dependentes do diesel (assim como de agrotóxicos). Tudo isso criou um país que, quando funciona a pleno vapor, gera poluição, doenças, mortes, mal estar. Não deixa de ser sintomático que a paralisação tenha como efeito colateral, além das perdas produtivas, melhorias em muitos aspectos da vida cotidiana.
As cidades estão desobstruídas e silenciosas, com vias livres para bicicletas e pedestres. Em muitas cidades brasileiras o número de ciclistas praticamente dobrou e a poluição do ar reduziu pela metade depois de uma semana sem gasolina. Se esse padrão fosse mantido, milhares de mortes geradas por problemas respiratórios seriam evitadas. Revela-se a fragilidade das escolhas que nos legaram uma economia ineficaz, poluente e violenta. A revisão desse caminho é para ontem: agroecologia, agricultura urbana, trens, metrôs, bondes, energia eólica e solar, acesso à terra, reciclagem e compostagem de lixo, entre outros, conformam a agenda urgente vislumbrada na fissura aberta por esses dias de paralisação.
Por Marco Aurelio