A primeira palestra do dia no congresso do Colégio Americano de Médicos (ACP2023), o maior congresso de internal medicine/clínica médica dos Estados Unidos (EUA) foi sobre um tema que vem ganhando cada vez mais importância: a doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD) e a esteato hepatite não alcoólica (NASH). A palestra do Brett W. Sadowski trouxe insights relevantes sobre o tema para a nossa prática clínica, independentemente do cenário (seja atenção primária ou especialidades), uma vez que se trata de um tema com grande interseção dentre diversas especialidades.

A definição de NAFLD é um quadro de esteatose hepática (grau> 5%) não justificada por outras causas, sobretudo causas alcoólicas. Já NASH recebe a mesma definição, acrescida pela presença de lesão hepatocelular (com alteração de enzimas hepáticas) com ou sem fibrose hepática.

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ACP 2023: Doença hepática gordurosa não alcoólica - como o clínico deve abordar?

ACP 2023: Doença hepática gordurosa não alcoólica – como o clínico deve abordar?

Aumento progressivo de casos e prevalência subestimada

O aumento progressivo no número de casos de NAFLD e NASH é uma preocupação. Atualmente, estima-se que mais de 30% da população mundial apresenta algum grau de doença hepática gordurosa não alcoólica e aproximadamente 14% tem NASH. Esses dados foram previamente subestimados. Ainda, há uma previsão de que toleram aproximadamente 100.000 novos casos de cirrose hepática (CH) descompensada por NASH até 2030.

O problema está mais abaixo: além dos riscos relacionados à herança hepática, assim como em condições como DM2 e doença renal crônica (DRC), a principal causa de mortalidade nesses pacientes é cardiovascular, refletindo que essa é mais uma face possível das alterações metabólicas que acabam por culminar com o maior risco cardiovascular. Logo, é fundamental atentarmos para o controle desses fatores de risco nos pacientes com DHGNA.

Papel do clínico na investigação

O papel do clínico na investigação da DHGNA deve ser inicialmente, confrontar, reconhecer e estratificar a doença hepática. É fundamental correlacionar com fatores de risco. Para isso, o Dr. Brett trouxe um algoritmo já publicado (referência 1 no final) que traz uma recomendação simplificada.

1) Identificar e rastrear

– Devemos sempre considerar o risco de DHGNA sobretudo em 3 grupos de pacientes:

  • Todos com DM2

– A prevalência de NAFLD pode chegar a 72% em pacientes com DM, sendo 21% com fibrose moderada/avançada

  • Presença de 2 ou mais fatores de risco para doenças cardiovasculares
  • Presença de esteatose hepática em qualquer exame de imagem prévio

2) Avaliação clínica e laboratorial

– Descartar o uso de álcool, outras causas para esteatose, solicitar exames para avaliação hepática

3) Pontuação FIB-4

– Com base em AST, ALT, Plaquetas e idade, é possível utilizar um Score de predição de risco de fibrose. A importância disso é que a presença de fibrose, independentemente de cirrose, prediz desfechos e até mesmo maior risco de mortalidade por todas as causas. Portanto, é fundamental entendermos. Dos valores do FIB-4, passamos ao próximo passo:

a) Baixo risco (<1,4): Seguimento a cada 2-3 anos com reavaliação dos fatores de risco

b) Risco intermediário (1,4 a 2,6): Aqui, o mais importante do ponto de vista de conduta, devemos solicitar métodos de avaliação como a elastografia hepática para avaliação indireta de fibrose.

c) Alto risco (> 2,6): Seguimento com hepatologista – o manejo desses casos será individualizado, às vezes com necessidade de biópsia e descarte de demais causas possíveis. Vamos nos ater às condições de manejo para o clínico não hepatologista.

4) Avaliação da fibrose hepática

– Esta etapa deve ser realizada pelo clínico sobretudo quando houver um risco intermediário pelo FIB-4. Aqui, devemos reestratificar de acordo com os achados:

<8 kPA: Baixo risco de fibrose avançado: Manejo clínico de fatores de risco e reavaliação em 2a

8-12 kPA: Risco intermediário: Encaminhar ao hepatologista (considerar biópsia hepática) ou reavaliação a cada 2a; terapia individualizada (ver a seguir)

> 12 kPA: Alto risco: Encaminhar ao hepatologista

manejo clinico

Além dessa estratificação em busca da presença ou não de fibrose, é fundamental termos em mente que o manejo clínico é fundamental para redução da morbidade associada à condição. Portanto, devemos nos atentar:

mudança no estilo de vida

– A DHGNA está intimamente relacionada à obesidade. Uma perda de peso de cerca de 10% pode resolver a inflamação na NASH em 90% dos pacientes e até mesmo promover a redução na fibrose hepática. A atividade física (os clássicos “150 minutos/semana”) parece também impactar positivamente, a manifestação fisiológica independentemente da perda de peso.

Estatinas

– Trata-se de um grupo de alto risco cardiovascular em que estudos observacionais vem demonstrando uma subutilização de estatinas, provavelmente pelo medo do clínico em iniciar essa aula na vigência de um processo hepático. O Dr. Brett é categórico: nem mesmo pacientes com fibrose hepática ou cirrose possuem contraindicação ao início de estatinas e devem ser utilizados para o tratamento de pacientes que apresentam indicações de uso recomendados pelas diretrizes de dislipidemia, mas a mensagem é que não devemos subtratar essa população).

Medidas específicas

– Este foi um tema facilmente mais rapidamente, porém dentro da revisão de medicamentos disponíveis e já tratados, algumas considerações. Vale lembrar que nenhuma medicação é aprovada pelo FDA especificamente para o tratamento da NAFLD

  • a) Agonistas de GLP-1

– Parecem ser o grupo mais promissor, melhorando esteatose, induzindo perda de peso e mantendo a eficiência de progressão de fibrose hepática em alguns estudos. Tanto a liraglutida como a semaglutida (referência 2) tem grandes RCTs mostrando melhora de índices hepáticos. A tirzepatida também vem demonstrando bons resultados.

  • b) Pioglitazona

– Para pacientes com DM2, a pioglitazona pode ser uma opção também pelos benefícios demonstrados na redução da esteatohepatite e melhora da sensibilidade à insulina. Podemos nos atentar a contraindicações potenciais no entanto como tolerar transaminases, IC, situações com risco de piora de edemas e piora da saúde óssea.

  • c) Vit E

– Não foi foco da palestra, mas em um slide é realmente como terapia potencial em pacientes não diabéticos devido a um RCT publicado no NEJM em 2010 (ref 3)

  • Por fim, é sabido que pacientes obesos com indicação precisa e que são encaminhados à cirurgia bariátrica tem um benefício enorme, inclusive com reversão de fibrose em iniciais iniciais. Vale lembrar que a perda rápida de peso pode descompensar um quadro de cirrose hepática e devemos ter cuidado nessa indicação, individualizando os casos e sempre acompanhados por uma equipe multidisciplinar.

Leia também: ACP 2023: O manejo de idosos com antibióticos e multicomorbidades

Conclusões

Por fim, uma frase fundamental do Dr. Brett quando avaliamos NAFLD e seu prognóstico:

“A fibrose é a chave, quer tenham NASH ou não!”

Nossa missão enquanto clínicos é identificar os casos, avaliar o risco de fibrose e tratar agressivamente os fatores de risco cardiovascular.

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autor

Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – Faculdade de Medicina de Botucatu

Referências bibliográficas:Ícone de seta para baixo

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