Visão de Fato – 04 de Setembro de 2024
Os “defensores da democracia” e os “antidemocráticos”
Por Jocelaine Santos
A democracia estava sob ameaça, disseram os “defensores da democracia”. A ameaça começou quando as pessoas comuns resolveram participar da política, até então dominada apenas por políticos profissionais, sindicalistas, magistrados, intelectuais, artistas globais e especialistas. Era um disparate ver aposentados e donas de casa pensando seriamente em política, questionando o sistema, a atuação dos juízes, ousando pedir menos interferência do Estado, mais liberdade, mais transparência, menos corrupção.
Essas pessoas comuns, até então, aceitavam passivamente o papel de meros espectadores do jogo político, servindo apenas para aplaudir discursos ou votar a cada dois anos. Mas passaram a debater política nas redes sociais, em grupos de discussão e até a sair às ruas vestidos de verde e amarelo cobrando o fim da corrupção, um país melhor, demonstrando seus valores, como a defesa da família, o amor à pátria e a Deus. Até elegeram representantes que defendiam tais valores.
Essa reviravolta causou grande preocupação nos “defensores da democracia” – porque a democracia dos “defensores da democracia” era aquela feita sem as pessoas comuns, sem os aposentados, sem empresários, empreendedores, trabalhadores, pais e mães de família, pagadores de impostos, como se diz. No máximo, sindicalistas e estudantes eram convocados aqui e ali para fazer volume em passeatas ou invasões orquestradas pelos partidos, mas só.
No íntimo, os “defensores da democracia”, que enchiam a boca para declarar seu amor à democracia, tinham ódio do verdadeiro povo, das pessoas comuns, que insistiam em falar em valores retrógrados como família e Deus, honestidade e liberdade. Pessoas que acreditam que existe o certo e o errado, e que nem tudo é relativo. Aos olhos dos “defensores da democracia”, são gente atrasada, perigosa, que precisa ser reprimida, posta em seu devido lugar – no silêncio e na inação. Gente que não pode ter o direito de falar.
Por isso, os “defensores da democracia” começaram a agir. Era preciso deixar claro que apenas a democracia do pensamento único, onde apenas um viés político pode prosperar, sem participação do povo, sem debates de ideias, sem críticas a qualquer tipo de autoridade pode existir. Primeiro, trabalharam para colocar de volta em cena dezenas de políticos corruptos que haviam sido condenados e que estavam na prisão. Como num passe de mágica, as provas contra eles foram anuladas e todos voltaram ao jogo como se nada tivesse acontecido. Quem chamar qualquer um deles hoje de corrupto ou ladrão pode ser condenado por injúria.
Depois de soltar os corruptos e perseguir aqueles que os tinham colocado na cadeia, os “defensores da democracia” começaram a eliminar os “antidemocráticos”, ou seja, qualquer um que insistia que uma democracia só existe quando há liberdade de opinião. Todos que levantavam a voz para pedir mais liberdade ou questionar os “defensores da democracia” eram chamados de “antidemocráticos” – quando não coisa pior, como fascista e afins. Uma investigação infinita, cujas páginas secretas continuam desconhecidas até hoje, foi aberta para listar todos os antidemocráticos do Brasil – quem sabe do mundo inteiro. Meu nome pode estar nela, o seu também. Nunca se sabe.
As eleições, claro, foram todas feitas sob os olhos dos “defensores da democracia”. Era preciso impedir que os “antidemocráticos” se elegessem. Qualquer notícia que desabonasse os candidatos dos “defensores da democracia” foi censurada, não por ser mentira, mas porque podia causar “desordem informacional”, termo usado para justificar o que não tinha qualquer justificativa. Enfim, os defensores da democracia conseguiram eleger seu candidato principal por uma margem estreita de votos, mas alguns “antidemocráticos” também foram eleitos.
Quando centenas de pessoas comuns fizeram um ato em Brasília para mostrar seu descontentamento – e alguns dos manifestantes acabaram depredando o patrimônio público – o ato foi sumariamente chamado de tentativa de golpe de Estado. Brasília estava vazia, ninguém estava armado, não havia apoio de nenhum Exército, mas ainda assim os “defensores da democracia” decretaram que havia sido uma tentativa de golpe de Estado. Já há centenas de condenados, idosos, jovens, aposentados, doentes, pais, mães, trabalhadores. Houve quem tenha morrido na prisão. Mérito dos “defensores da democracia”.
Calar a voz dos “antidemocráticos” virou obsessão dos “defensores da democracia”. Os códigos jurídicos e até a Constituição foram atropelados – tais documentos, aliás, só valem a partir da interpretação dos “defensores da democracia” – novos crimes, penas e procedimentos foram inventados para poder defender a democracia dos bestiais seres “antidemocráticos”.
Nessa luta insana, a última cartada foi, de uma vez só, bloquear uma rede social inteira, censurando milhões. Coisa igual já se viu em muitos outros lugares governados pelos “defensores da democracia”, como a China ou a Venezuela. Mas por aqui foi ainda pior. Não contente em censurar milhões com uma simples canetada, o paladino-mor dos “defensores da democracia” ainda determinou uma multa de 50 mil reais – coisa que ele e seus pares ganham num mês, mas a maioria dos brasileiros não ganha nem em um ano – para quem insistir em acessar a rede social…
Como será que terminará essa história? Os “defensores da democracia” vão triunfar em seu intento de calar quem pede mais liberdade? Será que eles vão consolidar seu ideal de democracia relativa onde apenas os “intelectuais”, os “progressistas”, os “magistrados iluminados” têm voz? Ou o país vai, finalmente, se libertar das garras dos “defensores da democracia”? Ainda não sabemos.