Atacar as fontes de financiamento de empresas que constroem e disseminam notícias falsas virou uma estratégia efetiva. Os anunciantes que o Sleeping Giants convenceu a não apoiar máquinas de mentira no Brasil estão aí para não me deixar mentir. Não está claro, porém, qual é a melhor forma de incentivar as pessoas a checarem uma informação antes de compartilhá-la.
Nesta semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) impediu que uma solução duvidosa para este problema ganhasse corpo. Evitou que fosse sacrificada a privacidade de qualquer pessoa que passasse uma fake news adiante. Detalhe: a quebra de sigilo valeria até para quem faz isso com intenção de desarticular mentiras.
O caso que levou o STJ a se posicionar acontece aos montes em todo canto do Brasil. O que rolou foi o seguinte:
- Um sujeito publicou no Facebook um vídeo dizendo ter comprado um salgado com larvas em uma padaria de São José (SC). Depois…
- … Uma página sobre assuntos locais republicou o material. A mentira ganhou escala, muita gente compartilhou, mas…
- … A padaria não curtiu. Não fora ela a vender o produto, mas foi ela que perdeu fornecedores e arcou com o prejuízo. Por isso…
- … Acionou a Justiça, que mandou o Face derrubar o tal vídeo e ceder dados do autor e do dono da página. Mas a padaria queria mais e…
- … Apelou ao Tribunal de Justiça de SC e conseguiu decisão para obter informações pessoais de TODO MUNDO que compartilhou o post. O problema é que…
- … Nesse bololô, tinha gente, bem intencionada. Uns acreditavam de fato estar alertando sobre o alimento bichado, outros queriam apontar a mentira, enfim… Bolado com a decisão…
- … O Face levou o assunto ao STJ, que reformou a decisão do TJ-SC. Em sentença, o relator defendeu a privacidade:
Não se pode subjugar o direito à privacidade a ponto de permitir a quebra indiscriminada do sigilo dos registros, com informações de foro íntimo dos usuários, tão somente pelo fato de terem compartilhado determinado vídeo que, depois, veio a se saber que era falso
Luis Felipe Salomão, ministro do STJ
Salomão reconheceu que, nas redes sociais, os usuários exercem a toda hora seu direito à liberdade de expressão. Mas acrescentou que ela tem limites, notadamente quando usada para avançar sobre os direitos de outra pessoa. Quando isso ocorre, continua o ministro, é possível quebrar o sigilo de dados de alguém para responsabilizá-lo, algo garantido pelo Marco Civil da Internet.
No entanto, a lei apelidada de Constituição da Internet Brasileira exige que haja prova de ato ilícito. Para o TJ-SC, apenas compartilhar fake news, seja lá com qual intenção, já é indício da má-fé do usuário. Para o STJ, não é bem assim. A corte já consolidou o entendimento de que o simples fato de repassar um post adiante (compartilhar, retuitar, encaminhar, etc) não é algo ilícito.
O Facebook obviamente gostou da decisão. Ainda mais porque a padaria não informou sequer quem eram os usuários que deveriam ter os dados devassados. Jogou um “manda os dados aí” e pulou fora. Se isso passasse, estaria aberta a porteira para a violação de privacidade de baciada, sem razão justificada e, conforme mostrou o STJ, ao arrepio da lei.
Curiosamente, o mesmo STJ, que agora desarma uma bomba, foi o mesmo que puxou o pino de outro artefato explosivo no ano passado. O tribunal obrigou o Google a ceder dados de usuários para a investigação do Ministério Público do Rio sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
Até aí, tudo bem. Todos queremos saber #QuemMatouMarielle. Só que o pedido do MP-RJ era bastante amplo, pois queria saber:
- Todos os dados de geolocalização dos usuários que estavam na noite de 2 de dezembro de 2018 nos arredores de onde foi visto pela última vez o carro usado pelos atiradores;
- Todo mundo que buscou no Google por sete palavras-chave (“Marielle Franco”, “vereadora Marielle”, “agenda Marielle”, “agenda vereadora Marielle”, “Casa das Pretas”, “Rua dos Inválidos 122” e “Rua dos Inválidos”) nos cinco dias antes da noite do crime.
Especialistas em privacidade apontaram para o lado insólito da coisa. Imagine pesquisar um termo na internet e, do nada, passar a ser investigado por uma morte de grande repercussão nacional e internacional. Foi o que rolou. Ainda assim, não fosse a decisão do mesmo STJ, alguém que lesse uma fake news e a passasse adiante, ainda que com a melhor das intenções, também poderia ter seus dados expostos.
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