Opinião Jogo Aberto – 17 de Abril de 2020
Os efeitos sobre a soberania nacional .
A gripe espanhola contagiou, entre 1918 e 1920, cerca de 500 milhões de pessoas, um quarto da população mundial da época. Provocou entre 17 milhões e 50 milhões de óbitos, tornando-se uma das epidemias mais mortais da história da humanidade. Cem anos depois, chega o novo coronavírus.
Mais que as guerras, foram as pandemias que causaram redução da população no último milênio e trouxeram consigo o fim de costumes e o aparecimento de outros. O medo e a morte que atingem em larga escala a população mundial marcaram a história do Renascimento Italiano, que encontrou na peste negra do ano de 1348 um motivo sério para quebrar paradigmas.
O florentino Giovanni Boccaccio escreveu “Decamerão” no contorno da peste em Florência. Apesar de o seu conteúdo ter sido considerado libertino por muitos séculos, ergue-se como uma das maiores inovações literárias de todos os tempos. Nele, Boccaccio coloca o homem comum no papel de protagonista, revelando seus sentimentos, suas experiencias, suas tendências, enquanto deixa heróis e mitos fora da cena. Deu-se início na literatura aos temas normais, da beleza, da natureza, dos relacionamentos, da arte de viver.
Não se pode, evidentemente, afirmar que a pandemia foi a única responsável por essa fase áurea florentina, embora fique claro o contributo que deu para quebrar o gelo, abrir a visão e iluminar, depois de mil anos de era medieval e escritura de ordem épica ou teológica.
Boccaccio descreve a permanência em isolamento, atual nestes dias, de sete moças e três moços de famílias abastadas numa rica casa de campo. Em alternância, a cada dia um dos “isolados” conta uma história de sua autoria, sem economia de amores, experiências e percepções que nunca teriam lugar na normalidade medieval.
A catástrofe na cidade descongelou os sentimentos.
Florência regrediu de 130 mil para 30 mil habitantes. Aplicando o resultado em idênticas proporções a Belo Horizonte, a capital perderia, em alguns meses, 1,9 milhão de seus atuais habitantes. Os números assustam.
A Covid-19 é o primeiro fenômeno pandêmico em era de conectividade global. Nesse contexto, a China, de onde partiu o vírus que provoca milhares de mortes e paralisa as economias de meio mundo, paradoxalmente já se mostra como país mais beneficiado. Saiu do surto e ainda aparece como única alternativa de suprimentos de insumos e equipamentos hospitalares. Os demais países abdicaram dessa produção pela competitividade da manufatura chinesa que saiu de uma estratégia de adiamento de direitos trabalhistas e sociais, comuns no ocidente. A China monopoliza, na atualidade, diferentes setores de produção.
No caso dos insumos hospitalares, são vendidos por preços de dez até 20 vezes maiores do que se cobrava no começo do ano. Mesmo assim, é preciso pagar antecipado para entrar numa fila incerta e sem prazo garantido de entrega.
A guerra para comprar produtos chineses, deixando alguns países gravemente vulneráveis, deve mudar o comportamento de outras potências econômicas. O que ocorre com os produtos da linha de saúde pode acontecer para outros setores.
Está em curso a desvalorização e a falência de empresas ocidentais, que surgem como bons negócios para quem está capitalizado, exatamente na medida das corporações chinesas que estão adquirindo o que aparece pela frente.
Os benefícios sociais do governo brasileiro, distribuídos nesses primeiros momentos de isolamento e paralisação das atividades, poderão brevemente levar à desagregação econômica nacional, que assiste à queda da arrecadação de impostos. O momento é delicado.
A China ensina aos demais países a importância de se recuperar a soberania sobre a produção industrial que se segue da perda da capacidade tecnológica. A Covid-19 coloca os países ocidentais em alerta total.
Por outro lado, nos círculos intelectuais, a discussão levanta a teoria – ridicularizada até alguns anos atrás – da desaceleração econômica “feliz”. Quer dizer, queda dos consumos, especialmente os supérfluos. Novos modelos de melhoria das condições de vida sem aumentar o consumo de bens, mas aprimorando as relações sociais, os serviços coletivos e a qualidade ambiental.
Mais pobres, mas felizes. Parece até utopia uma construção de equilíbrios que siga movimentos coordenados no nível mundial com o objetivo comum de mudar o paradigma dominante do consumismo como fonte de bem-estar.
Por Marco Aurélio