Opinião: CBF tem o dever de ajudar o futebol brasileiro na crise do coronavírus, mas não deve distribuir dinheiro a clubes da elite
É verdade que a CBF tem muito dinheiro. A entidade encerrou 2018 com R$ 517 milhões em caixa e aplicações – o balanço referente a 2019 ainda não foi publicado. É verdade também que o coronavírus agravou crises pré-existentes de diversas magnitudes, e hoje dirigentes fazem contas para evitar uma quebradeira generalizada no futebol brasileiro. Há quem ligue os pontos e conclua: a confederação precisa salvar os clubes.
Antes de avançar sobre presente e futuro, talvez seja construtivo rever duas ou três coisas. É natural, por exemplo, que torcedores concentrem suas preocupações nos clubes para os quais torcem. Mas o fanatismo compreensível por uma instituição não pode ocultar alguns padrões.
Em particular no topo da pirâmide do futebol brasileiro, clubes estão cronicamente endividados e deficitários. Mesmo com generosa isenção tributária, dirigentes não pagam impostos e nada contribuem para a sociedade. Jogadores e técnicos têm promessas, mas levam meses ou anos para receber seus salários. Não falta dinheiro para pagar comissões a intermediários ou distribuir entre conselheiros, associados e chegados, no entanto. Dirigentes não são vítimas.
Por outro lado – sem perder de vista os cartolas presos no exterior ou “exilados” em seu próprio país, os que não podem viajar –, a CBF tem contribuições relevantes para a estrutura do futebol. A entidade paga IRPJ e CSLL, impostos que clubes não pagam. Só em 2018 foram R$ 44 milhões nessa linha. A confederação também arca com custos das equipes nas séries C e D anualmente – em 2018, respectivamente, R$ 29 milhões e R$ 36 milhões. Além das seleções de base e feminina.
Quer dizer que a CBF não poderia fazer mais pelo futebol? É claro que poderia. Estou dizendo que os cartolas da confederação são pobres coitados? De jeito nenhum. A ideia é lembrar fatos apenas para equilibrar a história. A vilanização infantiliza e inviabiliza o debate.
E o que a CBF deveria fazer na crise?
Clubes de futebol se dividem pelo menos nas seguintes realidades.
- Série A
- Série B
- Séries C e D
- Sem divisão nacional, apenas estadual
Reunir todos sem divisão nacional em apenas uma categoria é quase errado. Um competidor da primeira divisão do Campeonato Paulista ainda recebe direitos de transmissão, enquanto a maioria dos estados, não. Um integrante da primeira divisão do Campeonato Carioca tem um calendário razoavelmente previsível, enquanto um da terceira no próprio Rio de Janeiro, não. Para simplificar, aqui ficam todos juntos.
A CBF já sinalizou que não se responsabilizará pelo socorro aos clubes que não disputam suas competições. Walter Feldman, secretário-geral da entidade, disse em participação recente no Bem, Amigos que a incumbência cabe às federações estaduais. As federações recebem repasses regulares da CBF. Em 2018, foram R$ 26 milhões no total.
Na faixa intermediária, a CBF já anunciou um repasse emergencial para minimizar a crise do coronavírus. Um pacote de R$ 19 milhões em transferência “a fundo perdido” para as contas dos clubes de séries C e D, e um adiantamento das cotas de televisão para a Série B.
Muito ou pouco, fato é que clubes dessas três divisões já receberam algum tipo de socorro por parte da confederação. Eles provavelmente precisarão de mais. Não existem direitos de transmissão na terceira e na quarta divisões, e mesmo na segunda os valores são baixos. Patrocínios, bilheterias, transferências de atletas. Todas essas receitas são poucas e irregulares nesta faixa intermediária. Esses clubes precisam de ajuda.
Resta a primeira divisão. Até agora, a CBF não sinalizou com nenhum tipo de socorro para quem está no topo da pirâmide. E deveria?
Clubes da elite ainda têm direitos de transmissão, patrocínios, sócios-torcedores e transferências de atletas – as bilheterias, tudo indica, já desapareceram nesta temporada. Eles têm milhões de torcedores, os mecenas de sempre, enfim, essas agremiações têm soluções ao alcance.
O dinheiro proporcionado pela seleção brasileira – afinal é a seleção que a CBF explora comercialmente – precisa sustentar a base da pirâmide. Ainda que esses clubes não tenham torcidas numerosas para influenciar o debate público, ou dirigentes ruidosos, são eles os que estão irreversivelmente em apuros nesta crise generalizada.
Como socorrer a primeira divisão?
Distribuir dinheiro não é solução para ninguém. Nem para a CBF – que de fato precisa ter liquidez para manter todas as seleções e as contribuições à faixa intermediária –, nem para os clubes, pois nem mesmo toda a grana no caixa da confederação daria jeito nas contas.
Mas definitivamente há o que fazer do ponto de vista da CBF.
Um agravante para clubes da primeira divisão em vossa crise particular é que, apesar de grandes, eles não têm crédito na praça. Por mais que reduzam salários de jogadores e contenham custos, esses dirigentes não conseguirão resolver esse período extraordinário de campeonatos suspensos porque não têm como conseguir nem dinheiro emprestado.
A CBF pode exercer um papel fundamental nesse sentido. Levando em consideração que empréstimos bancários apenas são possíveis quando há garantias de pagamento, caso contrário bancos disparam taxas de juros ou apenas não concedem o crédito, os mais de R$ 500 milhões no caixa da entidade poderiam servir de garantia, excepcionalmente.
Com contrapartidas, no entanto. Clubes que se financiarem neste momento de crise precisariam pagar seus empréstimos dentro do prazo combinado. Um ano, três ou cinco? Tanto faz. A penalidade para quem não pagar – e consequentemente forçar a CBF a entrar com seu caixa para honrar o compromisso – poderia ser a mais severa possível. Rebaixamento para a última divisão. Exclusão do campeonato.
Linha de crédito com contrapartida. Para socorrer a primeira divisão em momento de justo desespero, porém sem descapitalizar a confederação, de modo a estimular a responsabilidade. Além disso, passou da hora de a CBF apresentar as regras do fair play financeiro.
Está na hora de tratar dirigente de futebol como gente grande. Até para que algum dia o Brasil volte a ocupar o destaque que lhe cabe no cenário internacional. Nesse sentido, assentar interpretações em fatos e fazer cobranças pertinentes e construtivas é a maneira como nós, imprensa e torcedores, podemos contribuir para esse amadurecimento.
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