O ídolo infantil errado: como a pequena cidade de Varginha recebeu o goleiro Bruno
Tietado por crianças e mulheres após ser condenado por assassinato com “motivo torpe”, o jogador ressurge para o futebol no Boa Esporte Clube e racha o Brasil
Enquanto o grandalhão de 1,90 metro treina num canto do gramado do Estádio Carlos Honório Benedito Ottoni, municipal, adaptado para servir de centro de treinamento do Boa Esporte Clube, em Varginha, interior de Minas Gerais, grupos de pessoas xeretam de longe, por trás do portão vermelho que dá acesso ao campo. Estão ali, na tarde da quarta-feira (15), para testemunhar os primeiros movimentos do goleiro Bruno no retorno ao futebol profissional após seis anos de prisão por assassinato. Com câmeras, microfones e bloquinhos nas mãos, um grupo é formado por repórteres e cinegrafistas. A imprensa faz uma cobertura muito mais intensa do que o Boa, time da segunda divisão nacional e do segundo escalão mineiro, está habituado quando apresenta novos atletas. Noutro grupo há senhores de chinelos e bigodes por fazer, sentados em pedaços de troncos, jogando conversa fora. Outro grupo tem crianças e adolescentes, nitidamente os mais ansiosos por se aproximar do novo reforço. Estão lá desacompanhados dos pais, empolgados pela nova contratação, mas tímidos por ver um astro tão de perto.
Júlio Cardoso, o Aranha, preparador de goleiros, faz repetições para testar os reflexos do goleiro. O professor bate de chapa na bola no lado esquerdo, Bruno se joga para agarrar, arremessa de volta e fica de pé. Repete no lado direito. Depois no esquerdo. Seis vezes. Fazem uma pausa. “Só quero trabalhar, professor”, diz Bruno em voz alta ao preparador, depois de ouvir algumas palavras no pé do ouvido. Uma avaliação física mais consistente ainda vai mostrar aos donos do Boa se ele terá condições, como prevê Aranha, de jogar profissionalmente em 40 ou 50 dias. Os primeiros sinais percebidos são positivos. O goleiro faz os exercícios sem ofegar, tem músculos definidos e nenhuma gordura aparente. Vez ou outra alguém tenta chamar a atenção dele de longe. “Deus te abençoe nesta nova caminhada!”, grita uma voz feminina na arquibancada. Esticado no gramado, o jogador faz sinal de joia e responde: “Amém! Conto com vocês”. Depois do treinamento e do banho, faz a alegria dos novos fãs. Do lado de fora do portão, há fila para encontrar Bruno. As primeiras são uma mulher e uma garota. Depois, um trio com dois meninos e uma menina. Em seguida vêm três rapazes mais velhos. Um a um, Bruno atende todos. Fala pouco, mas sorri, faz poses e incentiva um molequinho tímido de roupa surrada a tirar um selfie com ele.
O clima de reverência ao ídolo contrasta com o racha causado no resto do Brasil. Bruno Fernandes das Dores de Souza era titular absoluto do Flamengo, venerado pela torcida e cotado para a Seleção Brasileira quando foi preso preventivamente em 2010. Depois, foi condenado a 22 anos e três meses de reclusão pela participação na morte da modelo paranaense Eliza Samudio, sua namorada. A condenação em primeira instância foi por homicídio com três agravantes – motivo torpe, meio cruel e impedimento de defesa da vítima. Em 24 de fevereiro de 2017 veio a reviravolta. Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus ao atleta porque o recurso dele em segunda instância ainda não havia sido julgado. A liminar permite a ele aguardar pela Justiça em liberdade. No momento, não há prazo para o julgamento em segunda instância. Os donos do Boa agiram rápido. O empresário Roberto Moraes surpreendeu os irmãos Rone e Rildo quando apareceu com Bruno e seu empresário, Lúcio Mauro, para almoçar. “Na hora meu irmão se assustou um pouco, mas eu falei: Rone, o Bruno é um jogador que pode nos ajudar dentro de campo. Ele falou: ‘Sério?’. Eu disse que sim. Meus irmãos compraram a ideia, fizemos a proposta e dez horas depois fechamos”, conta Moraes em entrevista a ÉPOCA. O cartola não previa a polêmica que causaria.
O ganho que Bruno pode gerar ao Boa ainda está por ser provado. O prejuízo apareceu de imediato. O patrocinador master Góis & Silva, a fornecedora de materiais esportivos Kanxa e três parceiros menores – Nutrends Nutrition, Cardiocenter e Magsul – romperam contratos com o clube em represália à contratação. Eles não querem ver suas marcas associadas a um homem condenado por assassinato com “motivo torpe” e “meio cruel”. A prefeitura de Varginha publicou uma nota em que afirma reavaliar a parceria com o time – tanto o centro de treinamento adaptado no Benedito Ottoni quanto o Estádio do Melão, onde a equipe manda suas partidas, são municipais. As saídas não vão quebrar o clube, cujas finanças se sustentam na cota de televisão da Série B e no apoio dos irmãos Moraes, filhos de agropecuarista. Mas o dano à imagem é sério. O site do Boa foi hackeado e passou a exibir números sobre o feminicídio no Brasil. Um movimento feminista fez protestos nas ruas de Varginha na noite da terça-feira (14). Nas redes sociais a repercussão foi mais pesada e chocou Roberto, dono do Boa.
As reações raivosas divergem das cenas que misturaram carinho e curiosidade durante o treino e, horas depois, no jogo entre Boa e Araxá, pela segunda divisão estadual. Logo que passou pelas catracas do Estádio do Melão, 20 minutos antes do início da partida, às 20 horas, Bruno primeiro cumprimentou os policiais que faziam a revista – boa parte deles mulher – e depois partiu para o meio do público. As câmeras e luzes apressadas da imprensa alertaram os torcedores sobre a presença dele. Mais uma vez Bruno abraçou, sorriu e tirou fotos. Vários homens no Melão se mostraram favoráveis à contratação. Dos quatro entrevistados por ÉPOCA, com idade entre 25 e 70 anos, três defenderam sem restrições o investimento do Boa. Só Lucas Biasoni, de 32 anos, fez ressalvas, e ainda assim de ordem prática, e não moral. Ele acredita que o jogador merece uma nova chance como qualquer outro, mas não tem certeza se faria a mesma aposta que os irmãos Moraes. “Não sei se por um goleiro vale a pena tudo o que eles estão perdendo e como estão sendo apontados pelo Brasil inteiro. Acho que não”, disse. Um comerciante se recusou a falar por temer que sua opinião pudesse prejudicar seu negócio. É consenso, entre as pessoas ouvidas, que a polêmica dividiu famílias e amigos na cidade. ÉPOCA tentou ouvir quatro mulheres no estádio, mas nenhuma quis falar. No dia seguinte ao jogo, outras três mulheres, mesmo distantes do estádio, também se recusaram a opinar. Michele Bernardes, de 20 anos, aceitou. Afirmou que o jogador deveria ter cumprido toda a sua pena antes de ser contratado. “Não é da minha índole aceitar isso”, disse. Nos arredores, não é fácil achar quem se expresse com a mesma clareza.
Fonte: Exame