Neymar perdeu o direito à régua que mede outros craques

Neymar é a prova mais evidente de que não há atividade humana em que o protagonista seja avaliado exclusivamente pelo nível de suas atuações. Em especial as grandes estrelas, sejam artistas ou jogadores de futebol. Estes são mais do que a bola que jogam: são, também, aquilo que comunicam, as sensações, simpatias e antipatias que despertam. São humanos julgados por humanos.

O talento permitiu a Neymar fazer, quase sempre, suas escolhas: jogou nos clubes que quis, no momento em que quis e nas condições que desejava. E, sempre que esteve em campo livre de lesões, seu nível de jogo justificou sua inclusão entre os melhores do mundo. Mas entre eventos controláveis e outros incontroláveis, viu o personagem turvar a impressão sobre o jogador.

Neymar foi expulso na derrota do PSG para o Lille

Neymar não teve sorte com as lesões: teve que abandonar antes da hora uma Copa do Mundo em que era brilhante com apenas 22 anos, jogou o Mundial seguinte fora das melhores condições após uma fratura, perdeu duas retas finais de Liga dos Campeões pelo PSG. E estas, por mais que se tentasse transferir o debate para o seu estilo de jogo, eram circunstâncias que fugiam a seu controle. Neymar tampouco pode controlar a dificuldade que meio mundo tem de ver um jovem ascender socialmente e se exibir curtindo a vida de milionário sem constrangimentos.

Mas Neymar também foi o jogador que construiu a fama de simulador, de amplificador de choques com rivais. Foi também acusado de provocações tolas em campo. Muito maior do que o mercado brasileiro, fez mau uso da liberdade que o Santos lhe deu para negociar sua transferência. Adiante, também foi pouco cuidadoso ao gerir a saída do Barcelona, levando à Justiça a disputa por luvas de um contrato que mal cumpriu. Repetiria a falta de zelo ao forçar a saída do PSG, esta mal sucedida. Neymar foi descuidado até no pior Réveillon da história recente da humanidade, momento em que o Brasil contava mortes na casa do milhar por dia e famílias viravam o ano separadas pela pandemia.

O resultado é que, em algum momento, Neymar perdeu o direito à régua que mede os demais craques, fosse na avaliação de seu futebol ou dos eventos controversos em que se envolveu. Sua mais recente expulsão, sábado, no último minuto da derrota para o Lille, é exemplar neste aspecto.

Neymar tem em seu perfil uma fragilidade clara: a dificuldade para lidar com frustrações. Seu time perdia jogo vital na disputa pela liga francesa e o craque brasileiro já sofrera cinco faltas. Na sexta, explodiu contra o lateral Djaló, autor de três das infrações. Foi expulso e, claro, o debate internacional foi tão focado nas reações explosivas e imaturas de um astro de 29 anos, que outros eventos passaram despercebidos. Djaló fizera sua terceira falta no brasileiro, alvo de seis das doze infrações cometidas pelo Lille; em seguida, o lateral tentou retardar o reinício com antijogo e, após ser empurrado por Neymar, simulou uma contusão no rosto.

Desde que chegou à França, Neymar não é apenas o jogador que mais sofre faltas na Ligue 1: é quem mais sofre faltas em todas as cinco principais ligas da Europa, numa média de 4,4 infrações por jogo. Neste período em Paris, teve três lesões graves causadas por pancadas duríssimas, sendo duas fraturas. E, mais importante, foi vítima de racismo em campo.

A exceção da ofensa racial, em todos os demais episódios discutiu-se mais sobre o estilo de Neymar do que sobre as atitudes antiesportivas contra ele. Debate-se com muita frequência se seus dribles e sua condução de bola, recursos absolutamente dentro das regras do jogo, atraem as faltas e a ira dos rivais. Mas debate-se pouco sobre o antijogo e, muito menos, sobre a conduta de árbitros em eventos que o envolvem. Um deles, o caso de racismo.

O brasileiro chegou à França como a estrela solitária de um campeonato, alvo óbvio de adversários por questões futebolísticas e até raciais. A Ligue 1 se tornou um ambiente especialmente hostil a Neymar, testado em bases semanais naquela que é sua grande fragilidade como futebolista: o equilíbrio emocional, especialmente em ocasiões nas quais se vê frustrado. Neymar perdeu o direito a um debate equilibrado. E o personagem que turva a visão sobre o jogador tem muito a ver com isso. Mas é justo dizer que já era tempo de um atleta de elite, aos 29 anos, lidar melhor com estes eventos. Em especial se, de fato, tem aspirações a títulos individuais. Porque não há julgamento humano imune a sensações, à empatia.

A partir desta quarta-feira, de volta ao grande palco da Liga dos Campeões, Neymar tem a chance de brigar por algo além do maior troféu de clubes do mundo: pode usar seu talento para polir a narrativa. O que inclui transmitir, em suas atitudes, sensações tão boas quanto as que cria com a bola. Afinal, humanos julgam humano

Fonte: GE


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