Mário Soares protagonizou o maior comício que a Figueira da Foz viu
A homenagem em 8 de dezembro, intitulada ‘Soares Sempre Fixe – Obrigado Mário Soares’, inclui um almoço no restaurante Teimoso, junto ao Cabo Mondego, local emblemático de encontros do Partido Socialista (PS) e espaço pelo qual Soares nutria um gosto especial, recordam antigos funcionários e companheiros de lides políticas.
Em declarações à Lusa, António Campos, fundador do PS, antigo deputado, ex-governante e coordenador da comissão local de homenagem a Mário Soares, recordou a ligação do antigo secretário-geral do PS à Figueira da Foz e, especificamente, à vila piscatória de Buarcos, onde era “idolatrado” pelas peixeiras.
“Ele adorava essa ligação popular. A Figueira acabava por ser para ele sempre uma festa”, frisou António Campos, que recordou, no entanto, que a ligação ao litoral centro do país “já vinha de trás”, através de um amigo da família, o advogado Contente Ribeiro, que possuía uma quinta na aldeia de Reveles – freguesia de Abrunheira, no vizinho concelho de Montemor-o-Velho – onde Mário Soares costumava ficar e onde chegou a estar refugiado e escondido da PIDE.
António Campos, então um jovem com 25 anos, conheceu Mário Soares em 1963, numa reunião clandestina em que participou em Lisboa, “com os velhos republicanos”, acompanhado de Fernando Valle. Depois de ouvir Soares discursar, saiu convencido de que ele era “a pessoa que ia libertar Portugal da ditadura”.
“Chegou lá e deu cabo da reunião com um discurso brutal, monumental e eu fiquei de boca aberta. Tinha uma capacidade fantástica de oratória, uma oratória didática, pedagógica, que é aquilo que falta hoje na política. Ele fazia a pedagogia da política, isso, infelizmente, hoje, perdeu-se”, argumentou.
A ligação com Mário Soares, “uma amizade quase de irmão” perdurou e cimentou-se durante mais de meio século e António Campos espera que a celebração agendada para 08 de dezembro – que inclui o descerramento de uma placa toponímica na avenida Mário Soares, uma exposição evocativa na biblioteca municipal da Figueira da Foz e o almoço no Teimoso – “seja uma homenagem de histórias”, com a presença de jovens que não tiveram oportunidade de conhecer o histórico líder socialista.
“Espero que esteja lá malta nova: interessa explicar a história da vida dele e sua capacidade de resistência a jovens que não sabem o que é viver numa ditadura. Era bom que estivessem muitos jovens”, disse.
A secção local do PS da Figueira da Foz foi criada poucos meses depois do 25 de Abril de 1974 e para a história, lembrada pelos protagonistas dessa altura, ficam dois comícios: um nesse verão, que fez “transbordar” o Coliseu Figueirense, a praça de touros da cidade (onde Mário Soares, ausente na Argélia, não participou) e um outro, em 1975, em frente ao edifício da Câmara Municipal, no largo da Fonte Luminosa, prévio às eleições para a Assembleia Constituinte, já com Soares, que é recordado como o maior comício alguma vez realizado na cidade, com uma multidão que se estendia pelo final das ruas da República e Fernandes Tomás, até à praça 08 de Maio.
O advogado João Russo foi um dos que esteve na génese do PS local: participou num primeiro encontro, com esse objetivo, no antigo café Nicola, à mesa com os fundadores do PS António Campos e António Arnaut e o também advogado local Cerqueira da Rocha (estes dois últimos já falecidos) e, mais tarde, com o mesmo Cerqueira da Rocha, Joaquim de Sousa, João Neto ou Vítor Maia, entre outros, foi anfitrião de António Reis, também ele fundador do partido, naquela que é considerada a primeira reunião formal do PS local, realizada numa sala do primeiro andar do antigo edifício dos Bombeiros Voluntários.
“Falta lá uma placa [no edifício, hoje devoluto], o PS teve uma importância louca naquela altura. Mas o PSD também teve, porque tinha pessoas de altíssimo nível, como Melo Biscaia ou Rafael Sampaio”, lembrou.
João Russo arrendou a primeira sede do PS na Figueira da Foz – um segundo andar na rua da República – onde tempos mais tarde, Mário Soares, por ocasião de uma visita a várias sedes do país, haveria de protagonizar um divertido episódio: ao deparar-se com várias pessoas concentradas num dos patamares do interior do prédio, fez questão de as cumprimentar uma a uma, convencido de que seriam militantes socialistas, quando, afinal de contas, eram apenas clientes do dentista instalado no primeiro andar, que esperavam pela consulta.
O rol de histórias envolvendo Soares na Figueira da Foz continua na primavera de 1976, a 10 de junho, numa sardinhada de apoio à candidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República, em Buarcos, junto ao teatro Caras Direitas. Na altura, foi fotografado pelo jornalista José Santos com um autocolante de Eanes ao peito.
Mário Soares protagonizou ainda mais episódios nesse dia, sobre os quais várias fontes coincidem nos relatos, o primeiro dos quais quando decidiu, enquanto o candidato a PR não chegava ao local, ir à praia em frente tomar um banho de mar.
Embora os promotores da homenagem assinalem o Teimoso como ponto de encontro histórico entre Mário Soares e Álvaro Cunhal no final da década de 1940, não há registo de que essa reunião tenha efetivamente acontecido naquele estabelecimento que, na altura, seria ainda uma taberna de vinhos e petiscos, inaugurada em 1912 e que só 40 anos mais tarde se converteu definitivamente em restaurante.
Soares escreveu, em tempos, que o encontro na Figueira da Foz ocorreu efetivamente em Buarcos, mas na praia, a caminho da serra da Boa Viagem – eventualmente na zona onde se situa o Teimoso, no fim da avenida marginal – quando o histórico líder comunista, já na clandestinidade, quis conhecer o então dirigente juvenil do Movimento de Unidade Democrática e Cunhal insistiu para que jovem Mário ficasse em Portugal, mantivesse a atividade política e não fosse estudar para a Suíça.
Quem se lembra “muito bem” de Mário Soares no Teimoso é Emília Fernanda Félix, que nos últimos 30 anos, com várias interrupções pelo meio, desempenhou a função de chefe de sala do estabelecimento de restauração, pertença da família Sanchez há mais de um século.
A funcionária recorda que Soares chegava “de surpresa, sem avisar” e “sempre aos almoços”, quando se deslocava à Figueira da Foz ou fazendo desvios para o Teimoso quando ia a Coimbra ou Aveiro.
“Sempre gostou muito desta casa. E não vinha só ele, vinha imensa gente do PS, como o dr. Santana Maia [ex-bastonário da Ordem dos Médicos, que era vizinho do restaurante] e outras pessoas”, lembrou Fernanda, como é conhecida.
Os pratos preferidos do ex-Presidente da República não variavam muito: ou optava pela caldeirada ou pelo robalo grelhado. Já os vinhos eram sempre da região do Douro, recordou a chefe de mesa.
Soares não tinha uma mesa específica onde almoçar, continuou Fernanda Félix, até porque as aparições de surpresa a isso obstavam. É que o Teimoso, há uns anos, “não era um restaurante, era uma mina”, brincou, lembrando que especificamente aos domingos ao almoço, a sala estava repleta de clientes e existiam “imensas filas de gente à espera” pela sua vez.
“Um domingo, o dr. Mário Soares chegou sozinho com um motorista, mas não ficou sem almoçar. Fomos buscar uma mesa e pusemo-la a um canto, mas ele não se importava, vinha pelo nosso peixe”, reafirmou Fernanda Félix.
“Para o fim, das últimas vezes que veio [a última terá sido em 2010, por ocasião da homenagem da autarquia que lhe entregou a Chave de Honra da cidade] já adormecia muito na mesa, era uma coisa que nós achávamos imensa graça”, acrescentou.
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