Guerreiros Uru-Eu-Wau-Wau expulsam grileiros de terra indígena em Monte Negro
Terra indígena vem sendo invadida por grileiros desde 2016.
Numa atitude desesperada e perigosa, na semana passada oito guerreiros do povo Uru-Eu-Wau-Wau foram investigar a invasão por não-índios de seu território tradicional diante da falta de ação da Polícia Federal e da Fundação Nacional do Índio (Funai). Na ação, os guerreiros expulsaram cinco pessoas que ocupavam ilegalmente a terra indígena e causavam desmatamento do lado oeste da reserva, que fica no município de Monte Negro, a 250 km de Porto Velho, capital de Rondônia.
Na “operação” independente, os guerreiros apreenderam uma arma de fogo, motocicletas e destruíram uma balsa de travessia de rio usada pelos madeireiros. Na investigação, os indígenas descobriram que os invasores usam um posto de vigilância construído pela Usina Hidrelétrica de Jirau como compensação ambiental pela barragem no rio Madeira. O posto, construído em 2013, nunca foi ocupado pela Funai e desde então passou a ser usado como local de reunião de grileiros, madeireiros e invasores dentro da própria reserva.
A investigação dos guerreiros levou o temor às mulheres deles, criando o receio de que as aldeias sejam atacadas pelos invasores. Na terra indígena vivem mais de 200 índios que moram em seis aldeias: Alto Jamari, Limão, Aldeia Nova, Alto Jaru, Linha 621 e Linha 623. O território é sobreposto ao Parque Nacional de Pacaás Novos, a maior unidade de conversação de Rondônia.
O grupo de oito guerreiros Uru-Eu-Wau-Wau partiu para a “operação” independente dos órgãos públicos que deveriam proteger seu território no último dia 14. Com as flechas nas mãos, eles caminharam por 35 quilômetros dentro da floresta. A informação inicial era a de que nesse local havia 40 homens, mas eles encontraram apenas três. Os guerreiros retornaram da ação no dia 17.
No domingo (19), acompanhados por representantes da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, os guerreiros voltaram à área de extração de madeira e prenderam mais dois invasores. Todos foram expulsos da reserva. Os guerreiros não chegaram a ir à área de loteamento onde se estima ter 5.000 posseiros.
Segundo os guerreiros, a Polícia Federal esteve na aldeia Alto Jamari “rapidamente”, apenas no dia 17, mas não fez uma operação para expulsar os invasores.
A Amazônia Real entrevistou dois guerreiros Uru-Eu-Wau-Wau que foram investigar a grilagem e invasão de seu território localizado numa das regiões mais preservadas do sul de Rondônia, mas alvo da pressão do agronegócio. No depoimento, eles dizem que viram grandes extensões de área desmatada, castanheiras derrubadas e animais silvestres mortos.
A entrevista com os dois guerreiros foi realizada entre domingo (19) e segunda-feira (20) por meio da rede social WhatsApp. Os índios Uru-Eu têm acesso à internet na aldeia Alto Jamari, mas estão incomunicáveis via telefonia móvel e fixa. Leia as entrevistas abaixo:
Depoimento de Batuto Uru-Eu-Wau-Wau
“Todo mundo estava se organizando para esta operação. Meu sogro, que é cacique disse: ‘vamos flechar branco?’. Amanheceu o dia, então juntou eu, ele [o sogro, cacique Taroba], o Puruem (meu tio), Awapú, Monguitá, Uka, Erovak, Boakara. Fomos em oito.
Saímos da aldeia do Alto Jamari às 10 horas [do dia 14 de fevereiro]. Fomos andando no mato. O Warino foi só até a metade do caminho, voltou. Não chegou a ver os brancos na reserva.
Nós [oito guerreiros] dormimos no mato. Amanheceu e varamos numa picada. Encontramos vestígios de uma estrada. Não era nem picada, era estrada. Andamos uma hora de viagem e encontramos uma roça de dois alqueires e desmatamento dentro da floresta indígena. Dali, seguimos mais uma viagem e encontramos vestígios de novo. Encontramos uma roça com plantação dentro: milho, abóbora, banana. Mas a casa estava vazia.
Dali nós andamos mais um pouco e encontramos um dos caras [não-índio]. Abordamos: ‘quem deu autorização?’ Ele disse que teve autorização da Ceplac [sigla da Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira] e da Sedam [Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental], ambos órgãos de Rondônia.
Depois perguntamos se tinha mais alguns deles. Ele falou que tinha mais. Mas que eram quatro horas de viagem [o local da invasão]. Nós, então, fizemos as quatro horas de viagem andando, com ele algemado. Encontramos alguns objetos, uma arma de fogo e motocicletas. Apreendemos tudo.
Seguimos e encontramos mais dois [homens não-índios]. O resto tinha saído. Ficamos conversando. Ali tinha uma roça e uma casa feita de madeira. Eu acho que no total a área desmatada tem cinco roças de um alqueire e meio cada [ou 40.833,5 m2].
Um deles [invasor] queria agredir um índio. Ele [o invasor] disse que houve uma reunião numa casa que era base da Funai, que está parada.
Os caras que a gente prendeu [três não-índios], a gente só amarrou. Dissemos que não era para correr. Fizemos eles saírem da reserva.
Era para encontrar mais de 40 [não-índios], recebemos a informação. A gente guerreiro, com a coragem, fomos ver pessoalmente. Não encontramos os 40. Apenas encontramos esses três.
A gente ficou no barraco que eles estavam até amanhecer o dia.
Eu e mais dois fomos em busca de ajuda. E encontramos a Funai dentro da reserva. A Polícia Federal chegou quando a gente já estava de volta (na sexta-feira, dia 17). A gente já estava na aldeia.
A Polícia Federal quis levar o que a gente apreendeu, mas a gente conversou entre nós e falamos que não seria bom entregar. Já entregamos outras vezes arma de fogo e o que já chegou a acontecer é que a PF nunca fez nada até agora. A gente espera que a PF tome conta disso e faça o trabalho dela. A nossa parte já fizemos.”
Depoimento de Awapú Uru-Eu-Wau-Wau
“Eles [os não-índios] invadiram nossa terra e fomos lá para retirá-los. Temos direito. É nossa terra. E a Funai não foi. Fomos por nossa conta.
A gente foi porque ninguém faz nada. A gente foi pegar mesmo. Mas nem a Polícia Federal veio. Estão derrubando tudo, explorando tudo na reserva, derrubando madeira, matando as caças [animais]. Se depender da boa vontade dos outros, não vêm.
As mulheres [dos guerreiros] foram atrás mas não chegaram até a gente. Ficaram na metade do caminho. Ficaram preocupadas. A intenção delas era chegar lá com a gente.
A gente tem medo de vir [os invasores] atacar as aldeias. Mas a nossa preocupação é de eles estarem tudo armado. Preocupados em atacar nossa aldeia.
A nossa terra está desmatada, o rio desmatado. Para não acontecer mais isso, a gente está pedindo reforço do governo.”
Madeireiros e grileiros tomam posto da Funai
Depois que os oito guerreiros retornaram à aldeia Alto Jamari, no último domingo (19), a diretora da Associação Kanindé, Ivaneide Bandeira, e o antropólogo da entidade, Sérgio Cruz, estiveram na comunidade indígena.
Segundo Ivaneide, os índios Uru-Eu decidiram voltar à área invadida onde haviam expulsado três homens. Ela e o antropólogo acompanharam os guerreiros ao local. A diretora contou que na ação os índios encontraram mais dois invasores e os expulsaram.
“[Em outra ação] os indígenas Uru-Eu quebraram uma pequena balsa que os invasores usam para fazer travessias do rio Floresta até a terra indígena”, contou Ivaneide Bandeira.
Segundo ela, a balsa destruída estava a 30 metros do posto de vigilância abandonado da Funai, numa área denominada Barreira 2, dentro da terra indígena. Ivaneide disse que o posto foi construído com recursos da compensação ambiental pela construção das usinas hidrelétricas do rio Madeira.
Ivaneide afirmou que dois homens encontrados pelos guerreiros confessaram que o prédio do posto da Funai é usado com frequência para reuniões entre os invasores para discutir a retirada de madeira dentro da terra indígena.
Após a segunda “operação” dos guerreiros feita por conta própria, os indígenas e os dois membros da Kanindé reuniram fotos, vídeos e apresentaram um relato da situação à Polícia Federal para que o órgão tome as providências. Ivaneide Bandeira cobra a reativação dos postos de vigilância, com a presença de servidores da Funai dentro do território Uru-Eu-Wau-Wau.
O que diz a Funai
A Funai informou à Amazônia Real que acionou a Polícia Federal, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para que atuem em colaboração com o órgão indigenista, dentro das suas atribuições institucionais, a fim de evitar possíveis confrontos entre indígenas da TI Uru-Eu-Wau-Wau e os invasores.
A fundação disse ainda que está realizando o levantamento do tamanho da área invadida e a quantidade de não-indígenas que estão dentro da reserva, que tem 1,8 milhão de hectares. Procurada, a Superintendência da Polícia Federal em Rondônia disse que não vai comentar o assunto.
Sobre o prédio desativado, a assessoria da Funai disse se tratar de um posto de vigilância que faz parte do plano de compensação da Hidrelétrica de Jirau. Em nota, a fundação afirmou que o “prédio não foi oficialmente entregue à Funai pelo empreendedor, por esse motivo não está equipado e não pode ser administrado pela Funai.”
Procurada, a assessoria de imprensa da Energia Sustentável do Brasil S.A. (ESBR), concessionária da Usina Hidrelétrica (UHE) Jirau, negou que o posto de vigilância na TI Uru-Eu-Wau-Wau construído pela empresa como parte do processo de licenciamento ambiental da barragem ainda não tenha sido entregue à Funai. Em nota, a ESBR apresenta uma cronologia desde a conclusão do prédio, em janeiro de 2013, até seguidos envios de ofícios e realizações de reuniões que finalizaram em janeiro de 2016.
Segundo a nota, “o não recebimento do Posto pela Funai, em tempo hábil, resultou em atos de vandalismo na estrutura, além de danos por falta de ocupação e manutenção”. A assessoria disse que foram realizados “reparos adicionais”, deixando o posto “apto novamente ao recebimento”.
A assessoria da ESBR afirma ainda que em novembro de 2015, após ter conhecimento de toda a situação do Posto de Vigilância da TI Uru Eu Wau Wau, a Funai enviou ofício “informando que os serviços de adequação construtiva do Posto foram considerados satisfatórios.”
“Em reunião realizada com a Funai no dia 27 de janeiro de 2016, a representante da Fundação ressaltou entender que não compete à ESBR realizar nova reforma devido aos atos de vandalismos ocorridos no Posto de Vigilância após a finalização da obra e a execução de reparos adicionais, ambos já feitos pela ESBR”, completa a nota.
A ESBR afirma na nota que “entende que cumpriu com as suas obrigações em relação à construção do Posto de Vigilância na TI Uru Eu Wau Wau”.
A Funai voltou a ser procurada após a resposta da ESBR, mas disse que só poderá dar novas informações nesta segunda-feira (27).
Invasão aumentou nos últimos meses
A invasão à Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau se intensificou nos últimos quatro meses, período em que aumentaram os desmatamentos, as atividades de garimpo e de pesca predatória dentro do território dos índios. Os índios estimam que 5.000 pessoas estejam dentro das áreas invadidas.
Na reserva, os grileiros (pessoas que tomam posse de terras ilegalmente) abriram lotes de 100 hectares e passaram a comercializá-los por até R$ 20 mil com os invasores. Garimpeiros e pescadores também invadiram o território.
O caso foi denunciado em janeiro à Superintendência da Polícia Federal, mas o órgão não agiu ainda no sentido de expulsar os invasores da reserva.
Demarcada em 1991, a TI Uru-Eu sofre com invasão em seu território desde os anos 1970. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) expediu títulos de terras irregulares no interior da reserva. A Funai contestou. A ação ainda tramita na Justiça.
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), sem a definição judicial do litígio entre Incra e Funai, empresários e políticos dos municípios de Ariquemes e Monte Negro incentivam a invasão da terra dos Uru-Eu. Grileiros, madeireiros e garimpeiros aproveitam a situação.
Segundo Ivaneide Bandeira, o incentivo à invasão tem a participação de empresários e políticos de Rondônia. Nos últimos meses, eles aproveitaram até mesmo o posto abandonado da Funai dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau para fazer reuniões, incentivando a invasão da reserva.
As assessorias de imprensa da Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira (Ceplac) e da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam), ambos em Rondônia, foram procuradas via telefone e e-mail, mas as duas instituições não responderam aos pedidos de informação até a publicação desta reportagem.
Fonte:Amazônia Real