Governo Bolsonaro reduz multas em municípios onde desmatamento cresce
Multas em queda, desmatamento em alta. Com Jair Bolsonaro na Presidência, o governo federal tem diminuído as multas de crimes contra o meio ambiente na Amazônia – e essa redução ocorre mesmo onde cresce o desmatamento. Levantamento inédito da Agência Pública descobriu que, na Amazônia Legal, a cada dez municípios onde o Ibama multou menos em 2019, cerca de oito tiveram aumento no desmatamento no período.
Ao todo, em 2019 foram 234 municípios onde o governo reduziu multas ambientais relacionadas à flora, que incluem infrações decorrentes de desmatamento e queimadas ilegais, por exemplo. Já a quantidade de municípios onde o Ibama aumentou as multas foi bem menor, 141. Outros 20 municípios mantiveram a mesma quantidade de multas e 162 não registraram nenhuma multa, seja em 2018 ou em 2019.
A redução de multas do primeiro ano de Bolsonaro na Presidência se acentuou em 2020: de janeiro a julho deste ano, o Ibama multou 40% a menos em relação ao mesmo período de 2019. Foram 192 municípios com queda na quantidade de multas em relação a 2019. Com isso, em 2020 o Brasil registrou a menor quantidade de multas relacionadas à flora na Amazônia entre janeiro e julho em dez anos.
A Pública questionou o Ibama sobre a redução das multas e qual o motivo disso ter ocorrido. Também perguntamos ao órgão por que a redução foi registrada mesmo em áreas que registraram aumento do desmatamento e se isso impacta no combate ao desmatamento ilegal. O Ibama não respondeu até a publicação da reportagem.
Com Bolsonaro, multas caem no Pará e desmatamento avança
O Pará foi o estado onde a redução de multas foi mais acentuada: 52 municípios paraenses tiveram menos multas com Bolsonaro, apesar de 51 deles terem registrado aumento no desmatamento. Apenas 20 municípios registraram aumento de multas. Ao todo, 108 municípios no estado viram o desmatamento aumentar em 2019, comparado ao ano anterior.
É no Pará onde está Água Azul do Norte, município que registrou a maior queda de multas em 2019. Em 2018, último ano do governo de Michel Temer, o Ibama registrou 34 multas relacionadas à flora no município. Já com Bolsonaro, as multas foram zeradas. Apesar disso, o desmatamento na região cresceu 9,7% em 2019. É a primeira vez desde 2014 que o Ibama não multa nenhum infrator no município.
Fica em Água Azul a Terra Indígena Xikrin do Cateté, a mais afetada pela Covid-19 no estado e onde o povo Xikrin enfrenta a contaminação do rio pela mineração feita pela Onça Puma, empresa de propriedade da Vale. Há chumbo, ferro, cobre, níquel e cromo em teores acima das quantidades permitidas nas águas, e novos pedidos de mineração têm gerado alertas para o risco de maior contaminação das águas e novos focos de desmatamento.
Segundo Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, a redução das multas no Pará é uma contradição com a estratégia de atuação do governo, já que se trata de um dos estados prioritários para as medidas de fiscalização por registrar altos índices de desmatamento. “O Pará é um estado que historicamente tem problemas de desmatamento, onde o nível de ilegalidade do mercado da madeira é muito alto, não só no governo Bolsonaro. A fiscalização do órgão ambiental estadual lá é pequena e a Secretaria do Meio Ambiente tem pouquíssimos fiscais, então o Ibama tem sempre o Pará como área estratégica de atuação”, explica.
Com Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente, o Pará vem sofrendo com a descontinuação das ações de fiscalização, além de exonerações e trocas no corpo técnico. Em 2019, no início de setembro, o coronel Evandro Cunha assumiu a superintendência do Ibama no estado. Após a declaração de que o órgão cessaria a destruição de equipamentos apreendidos nas ações de fiscalização, Cunha foi exonerado, apenas seis dias após ter assumido o cargo. Em outubro, o coronel da reserva Walter Mendes Magalhães foi nomeado por Salles e assumiu a superintendência. Em fevereiro de 2020, reportagem apontou que Magalhães assinou licenças ambientais contrárias a normas do próprio Ibama para liberar a exportação de madeira. O ex-PM deixou o cargo em abril deste ano para assumir a coordenação geral de fiscalização ambiental. Após duas trocas de chefia em menos de um ano, Salles nomeou, no início de maio, um terceiro militar, o coronel da reserva Danilo Mitre Filho, para assumir a superintendência no estado.
A Pública conversou com um analista ambiental do Ibama, que pediu para não se identificar por medo de represálias. Segundo o servidor, o governo diminui a eficácia do órgão ao colocar militares, sem experiência em fiscalização ambiental, para coordenar equipes e operações. Segundo ele, o Ibama está submetido a “interventores”, que têm repreendido servidores que ainda se esforçam para manter ações de fiscalização. “Os cargos foram todos ocupados, na minha opinião, por interventores, que não têm uma relação de proximidade com a equipe. E antes disso há um conjunto de estratégias que vão minando o trabalho da fiscalização e que fica até difícil para a sociedade e para a imprensa conseguir mensurar, porque são ações pontuais que individualmente não aparentam grande relevância, mas que no todo causam impacto”, denuncia.
Seis dos sete estados onde o Ibama reduziu multas tiveram alta de desmatamento
Dos nove estados da Amazônia Legal, sete tiveram redução de multas no primeiro ano do governo Bolsonaro, apesar de seis deles terem registrado aumento no desmatamento.
Após o Pará, o Mato Grosso foi o estado que registrou a segunda maior redução de multas com Bolsonaro. Cerca de metade dos municípios mato-grossenses que receberam multas no ano de 2018 tiveram queda nas autuações no ano seguinte.
Antonio Oviedo, cientista ambiental e coordenador adjunto do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do Instituto Socioambiental (ISA), explica que levantamentos recentes do ISA na região identificaram imóveis privados que descumprem os limites de desmatamento determinados pelo Código Florestal. “A gente identificou também inúmeros imóveis privados que foram embargados pelo Ibama, mas que apresentaram desmatamentos enormes logo em seguida do embargo. Ou seja, os produtores praticamente desconsideram as multas e os embargos. Eles sabem que o governo tem uma agenda que defende esse tipo de conversão da floresta, que enxerga o desmatamento como uma proposta de desenvolvimento econômico para a região”, critica.
A Pública já havia revelado que o governo Bolsonaro tinha certificado mais de 250 mil hectares de fazendas em terras indígenas na Amazônia, nos estados do Mato Grosso, Pará e Maranhão. O ritmo de certificação de fazendas se tornou ainda mais intenso após a Funai ter publicado norma que permitiu o registro em terras não homologadas, em abril deste ano.
Campeões de desmatamento, queda em multas
Segundo o levantamento da Pública, entre os 30 municípios que tiveram maior aumento de desmatamento em 2019, mais da metade deles tiveram redução na aplicação de multas. Ao todo, 418 municípios da Amazônia tiveram aumento no desmatamento no primeiro ano do governo Bolsonaro.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) vêm revelando que o desmatamento na Amazônia está acelerado. O crescimento foi de 34% de agosto de 2019 a julho de 2020, comparado ao mesmo período do ano anterior. Em junho deste ano, o governo completou 14 meses seguidos de aumento de desmatamento no bioma, sempre em comparação aos mesmos meses do ano anterior.
Também em agosto, a agência espacial dos EUA, a Nasa, analisou que a maior parte dos incêndios recentes na Amazônia ocorreu em áreas recentemente desmatadas. O presidente havia associado as queimadas à atividade de caboclos e indígenas e disse que “essa história de que a Amazônia arde em fogo é uma mentira”. Já o vice-presidente, Hamilton Mourão, justificou parte das queimadas a “balões de São João, fogueiras e queima de lixo”, diferentemente do que os dados indicam.
Ações de Bolsonaro e Salles reduziram multas, aponta MPF
Segundo a avaliação da ex-presidente do Ibama Suely Araújo, a redução das multas em áreas com aumento de desmatamento é um resultado de atos da gestão de Bolsonaro, que agravaram dificuldades já existentes de fiscalização. Um dos exemplos, para Suely, foi a determinação das audiências de conciliação, uma “novidade” decretada por Salles em 2019, que instituiu núcleos com poder de avaliar e anular todas as multas aplicadas pelo Ibama no país. Este mês, o Observatório do Clima revelou que o governo realizou apenas cinco audiências desde outubro de 2019 no Ibama e nenhuma no ICMBio.
“Na prática, a conciliação tem sido um elemento que atrapalha ainda mais o processo e deixa mais infrações impunes. Isso significou retardar ainda mais o processo [relacionado às multas]. O infrator, se tem perspectiva que o processo vai demorar, que não vai dar em nada, fica mais confiante para cometer o crime”, critica a ex-presidente do Ibama. Para ela, não se trata de impedir as conciliações, mas do fato de o governo criar uma etapa burocrática sem avaliar os seus impactos ou se teria condições de cumpri-la.
Para Ana Carolina Haliuc, procuradora da República no Amazonas e integrante da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), as multas são importantes para desestimular os infratores, já que são acompanhadas de embargos que, por sua vez, impactam a fonte de renda de quem comete crimes ambientais. “O embargo impede que aquela pessoa que desmatou tenha, por exemplo, acesso a crédito, que ela seja capaz de vender gado produzido naquela área”, exemplifica. A Pública já revelou que produtores de gado multados pelo Ibama precisam articular uma série de manobras para desviar o gado de áreas embargadas para conseguir vendê-lo.
A Abrampa, acompanhada de diversas organizações ambientais, ingressou em junho com ação civil pública contra a política ambiental do governo, na qual denuncia Salles por improbidade administrativa por atuar contrário à proteção ambiental e aos princípios da administração pública. “Quando começou a pandemia, nós ficamos bastante preocupados a respeito de como a fiscalização ambiental ia responder a isso. Em um primeiro momento, nós achamos que haveria uma redução dos crimes ambientais. Só que, já no mês de março, quando saíram os primeiros dados consolidados a respeito do desmatamento, a gente viu que não era esse o cenário. Muito pelo contrário: o desmatamento havia crescido”, afirma a procuradora.
*Agência Pública