Apesar de discreto, o casamento que mais tem dado o que falar —sorry, príncipe Harry e Meghan Markle— é aquele entre tecnologia e política. A relação, às vezes nada amigável, dá mostras mais evidentes de cobertor curto na internet. Enquanto um lado alivia, outro endurece.
Mas alivia ou endurece o quê? E para quem? É, leitor, estou falando da sua vida digital, mais precisamente de dois aspectos importantes dela: sua privacidade e sua liberdade de expressão.
Aparentemente desconexas, as duas situações a seguir, no fim das contas, têm o poder de moldar a sua experiência digital daqui para frente. Tudo, porque:
- O Google já havia anunciado que seu navegador, o Chrome, barraria os “cookies”, aqueles rastreadores digitais que seguem você pela internet. Agora…
- … A empresa informou que em 2022, quando isso ocorrer, não vai desenvolver novas formas de monitorar o comportamento digital. Ponto para a privacidade, mas…
- … É bom deixar claro que serão vetados só os cookies de terceiros, aqueles feitos por um site X para vigiar você pelas páginas Y, W, Z. Estão liberados os cookies que funcionam no site que o criou. Ainda assim, ponto para a privacidade — aliás, veja como apagá-los aqui. Só que…
- … Nem só de proteção de dados pessoais vivem o público da internet, não é mesmo? Há também o exercício da liberdade da expressão. Ou, dito de outra forma: postar, curtir, compartilhar, escrever umas bobagens, etc. Quanto a isso…
- … O prognóstico não é bom. Isso porque virou um hábito no Brasil passar a investigar críticas ao governo e à figura do presidente Jair Bolsonaro como possível crime contra a segurança nacional. Não foi só Felipe Neto, já que…
- … A prática atingiu um artista (que postou foto de uma bola de silicone que imitava a cabeça de Bolsonaro) e um jovem mineiro (que fez uma sátira sem graça sobre a visita do presidente a Uberlândia). Só que…
- … Parece que vai piorar. A Câmara derrubou o veto presidencial do dispositivo do pacote anticrime que estabelece pena maior para crimes contra a honra na internet. Gol contra.
Caso a derrubada do veto seja mantida pelo Senado, isso quer dizer que, caso sejam cometidos pela internet, os crimes a seguir terão pena triplicada dessa forma:
- Injúria (ofender a dignidade de alguém): hoje é detenção de um a seis meses; pode ir para três a 18 meses;
- Calúnia (imputar falsamente a alguém um crime): hoje é detenção de seis meses a dois anos; pode ir para 18 meses a seis anos;
- Difamação (atribuir a alguém um fato ofensivo): hoje é detenção de três meses a um ano; pode ir para nove meses a três anos.
O argumento dos idealizadores do pacote anticrime é que a internet tem o poder de ampliar a repercussão de ofensas. Portanto, caberia pena maior para ilícitos online. O problema é que o Código Penal já prevê que as penas aos crimes contra honra sejam ampliadas caso as ofensas ocorram “na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação”. Minha impressão é que isso contempla a internet. O aumento, porém, é menor, de um terço da pena.
O governo Bolsonaro, em um lapso de bom senso, vetou o trecho porque ele violaria o “princípio da proporcionalidade”. A sociedade puniria com muito mais rigor uma conduta cometida na internet do que a mesma conduta no mundo físico. Fora isso, crimes punidos com detenção superior a dois anos exigem abertura de inquérito policial. Imagina a delegacia de polícia depois de um dia de manifestação pró ou contra Lula ou Bolsonaro. Vai bombar.
Deputados disseram à repórter do UOL em Brasília Luciana Amaral que Bolsonaro vetou o trecho para não elevar as punições em meio ao inquérito das fake news no STF e às disputas judiciais envolvendo contas nas redes sociais de influenciadores, empresários e políticos bolsonaristas.
Os parlamentares esquecem, porém, que os inquéritos passam, mas os efeitos de uma lei casuísta perduram por muito tempo. Prova disso é vivermos em um país que usa até hoje uma lei da Ditadura Militar (1964-1985) para punir críticos e detratores do governo.
Não defendo a impunidade, mas já se foi o tempo em que a internet era terra sem lei. A legislação ora vigente já vem sendo aplicada para condutas ilícitas na rede. Mas penso no futuro. Devido à pandemia, nossas relações pessoais e profissionais passaram a ser mais digitais do que físicas. Isso não deve mudar mesmo com o fim dela. Talvez por isso ou por força das leis de proteção à privacidade, as companhias de internet já criam meios para nos dar mais privacidade. Por outro lado, me pergunto: como será viver em um mundo que pune mais duramente uma asneira escrita ou dita online do que uma falada cara a cara?
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