‘Estamos presos naquele dia’: 1 ano após rompimento de barragem de Brumadinho, os impactos duradouros da tragédia
Quando se conversa com afetados pelo rompimento da barragem de Brumadinho, muitos citam um mesmo sentimento, sejam essas pessoas parentes de vítimas, sobreviventes da tragédia, moradores da cidade ou agricultores da região. “É como se eu tivesse sido aprisionada em um dia”, “você acorda e todo dia é 25 de janeiro”, “é como se aquele dia não tivesse acabado”.
A barragem I da Mina de Córrego do Feijão, da Vale, se desfez no dia 25 de janeiro de 2019, e em menos de meia hora, matou 270 pessoas. Mas um ano depois, aqueles impactados direta ou indiretamente ainda não conseguem escapar das consequências psicológicas e materiais da tragédia.
“Quando aconteceu o rompimento da barragem de Mariana, em 2015, eu pensei que aquilo seria uma fase ruim para eles, que uma hora passaria. Mas hoje eu vejo que não é assim. Existia uma Brumadinho que nunca mais vai existir”, diz Marina Oliveira, articuladora social da Arquidiocese de Belo Horizonte e moradora da cidade.
Além de mudanças físicas na cidade, como bairros atingidos pela lama que estão se esvaziando, há crianças sem pais, famílias que ainda esperam achar seus parentes na lama, dramas financeiros e judiciais, agricultores endividados.
O incidente ainda não teve um desfecho judicial. Na última terça-feira, o Ministério Público de Minas Gerais apresentou denúncias contra 16 pessoas da Vale e da Tüv Süd, empresa alemã responsável pelo laudo que atestou a segurança da barragem, por homicídio doloso (quando há a intenção de matar ou se assume o risco de matar) e crimes ambientais.
Para o MP, “ficou demonstrada a existência de uma promíscua relação entre as duas corporações denunciadas, no sentido de esconder do Poder Público, sociedade, acionistas e investidores a inaceitável situação de segurança de várias das barragens de mineração mantidas pela Vale”, diz o órgão, em nota.
A Vale diz, também em nota, que “desde logo expressa sua perplexidade ante as acusações de dolo. Importante lembrar que outros órgãos também investigam o caso, sendo prematuro apontar assunção de risco consciente para provocar uma deliberada ruptura da barragem”.
Já a TÜV SÜD afirma que até que se apurem as reais causas do acidente de forma conclusiva, a empresa não poderá fornecer mais informações sobre o caso.
Ambas as empresas afirmam que colaboram com as autoridades.
As 11 famílias que ainda não acharam seus parentes
“No dia 22 de novembro, identificaram mais uma vítima. Era uma mulher, de cabelo preto. A minha irmã também tinha cabelo preto. Tive esperança, mas não era ela. A cada vez que encontram alguém, fico com expectativa. Espero todos os dias”, diz Natália Oliveira, irmã de Lecilda de Oliveira, que trabalhava na Vale havia quase 30 anos.
Foram encontrados e identificados corpos ou fragmentos de 259 pessoas (123 empregados da Vale, 117 terceirizados e 19 moradores da região); outras 11 seguem desaparecidas. Os parentes recebem informes diários das buscas pelo Whatsapp e, todas as quartas-feiras, acontece uma reunião com o Corpo de Bombeiros.
Passado tanto tempo, o trabalho de busca fica cada vez mais difícil, já que a área é extensa e o número de corpos não encontrados, pequeno. Além disso, esses corpos provavelmente estão em estado avançado de decomposição. Os Bombeiros trabalharam todos os dias desde o dia 25 de janeiro de 2019 — não pararam nem para as festas de fim de ano.
Estão na quinta fase de buscas. Nesta etapa, máquinas retiram pilhas de lama e caminhões as transportam para uma tenda, onde bombeiros reviram a lama seca três ou quatro vezes, processo que chamam de “dobras”, em busca de algum material humano que possa ser identificado, mesmo que seja pequeno. Esse material é encaminhado ao Instituto Médico Legal.
Não há previsão de quando a operação será encerrada — isso só acontecerá quando todos os corpos forem achados ou quando não for mais possível, devido à decomposição do material, encontrá-los.
“Me sinto como se estivéssemos numa fila e nossa vez nunca chega. É uma ferida aberta isso de você não poder dar dignidade para a pessoa. Para nós, que ficamos, é como se estivéssemos pulando uma etapa”, diz a irmã.
A Vale diz que segue apoiando o trabalho do Corpo dos Bombeiros e da Polícia Civil na busca e identificação de mortos, doando materiais que viabilizam a continuidade do trabalho.
‘Ela pega meu celular e fica vendo fotos do pai’: como as famílias lidam com crianças órfãs
A filha de Kenya Bernardes e Leonardo Godoy, funcionário terceirizado da Vale, tinha dois anos quando o pai morreu no rompimento da barragem. Na época, não tinha vocabulário para expressar o que sentia, mas agora, diz a mãe, está começando a fazê-lo.
“Eu não puxo o assunto, quando ela quer, ela expõe”, diz Kenya. Recentemente, a filha, hoje com 3 anos, falou pela primeira vez de forma mais articulada que estava com saudade do pai. “Mãe, vamos ligar pra ele?”, pediu. Então Kenya explicou que não seria possível, que ele “tinha virado estrela”, mas que ela também estava chateada.
Kenya passou a falar para a menina sobre como ela é parecida com o pai, “para aliviar a distância”. “Ela às vezes pega meu celular e eu acho que é para ver alguma coisa, mas não, é para ver fotos dele. Decidi revelar algumas para ela poder ter sempre e olhar quando quiser.”
Nas escolas, a orientação é não falar sobre o rompimento da barragem. “Os alunos não gostam de comentar. Já falam disso em casa, com a família, então na escola querem descontrair”, diz Leide Parreiras, que ensina geografia para estudantes do ensino médio da Escola Estadual Paulina Aluotto Ferreira.
Quando um aluno demonstra sofrimento ou seu nível de aprendizado cai, a escola o encaminha para o serviço de saúde. Alunos que ficaram órfãos recebem atendimento psicológico pago pela Vale.
“Não adianta a gente insistir para fazer os alunos falarem. O que a gente pode fazer é proporcionar uma escola melhor para eles”, diz a professora.
As indenizações
Uma parte das famílias de vítimas aceitou um acordo firmado em julho entre a Vale e o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais.
Ele prevê R$ 500 mil pagos para cônjuges, pais e filhos das vítimas e R$ 150 mil para irmãos, e o pagamento de um seguro adicional por acidente de trabalho no valor de R$ 200 mil aos pais, cônjuges ou companheiros(as) e filhos. Também estabelece recompensa por danos materiais compatíveis com salário e gratificações dos empregados, num valor mínimo de R$ 800 mil, além de plano de saúde para cônjuge e filhos e auxílio para pagamento de escola.
Nem todos aderiram. “Isso não foi um acordo, a Vale sentou com a Justiça e decidiu um valor. A gente não foi ouvido, não participou de nada. Foi uma imposição. Estamos lutando na Justiça para conseguir algo melhor”, diz Nayara Ferreira, que não aceitou a indenização proposta pela empresa.
Ela perdeu o marido, Everton Ferreira, que trabalhava no almoxarifado. Era ele quem bancava a casa. Quando a reportagem da BBC a conheceu, logo após a tragédia, em 2019, Nayara estava preocupada porque a empresa havia feito pagamento emergencial à filha de Everton, de um casamento anterior, mas não a ela. Depois, ela também foi ressarcida. Agora, recebe auxílio da Vale, no valor de um salário mínimo, e pensão do INSS, e incrementa sua renda trabalhando como cabeleireira.
A Vale nega que as famílias tenham sido excluídas das negociações. “Os termos do acordo trabalhista foram discutidos e acordados na 5ª Vara de Trabalho de Betim, entre a Vale, MPT e os sindicatos representativos das categorias envolvidas, perante o juiz federal responsável pela mediação. Após a negociação e antes da assinatura, houve reunião do MPT e sindicatos com as famílias para explicar a elas os termos do acordo e para que os familiares decidissem se celebrariam ou não tal pactuação”, diz a empresa.
Kenya Bernardes tampouco aceitou o acordo. “Não entendemos o critério que o MP usou para estabelecer os valores. Um estudo encomendado pela própria Vale dizia que, se acontecesse um incidente como o que aconteceu, o valor pago seria superior ao que o MP negociou — seria de R$ 2,5 milhões”, diz ela.
Procurada sobre essa diferença de valores, a Vale não respondeu até a publicação deste texto.
Kenya é psicóloga, mas está desempregada — foi demitida do centro socioeducativo onde trabalhava quando seu rendimento começou a cair, segundo ela, em decorrência do trauma e das muitas viagens que tinha que fazer para participar de audiências ligadas ao processo.
“Quando uma coisa dessas acontece, ela te toma muito tempo. Eu tive que aprender sobre temas, assuntos, vocábulos, termos técnicos, tive que me informar para saber quais eram meus direitos. Tudo isso toma muito tempo. Fora o impacto psicológico e emocional. Eu não estava rendendo o que a empresa queria”, diz Kenya.
Além das indenizações às famílias de vítimas, a Vale também faz pagamentos mensais a todos os moradores de Brumadinho no valor de um salário mínimo (R$1.039 em 2019) para adultos, 50% para adolescentes e 25% para crianças.
Quando o rompimento aconteceu, a empresa fez pagamentos emergenciais de R$ 100 mil para 276 famílias de vítimas e R$ 50 mil para cem famílias que residiam perto da barragem.
‘Tive que passar o trator em cima’ — as perdas de quem vivia da terra
O Assentamento Pastorinhas é cercado de mata por todos os lados. Nenhum de seus 152 hectares, 10 deles destinados à agricultura agroecológica, foi atingido pela lama. No entanto, as 20 famílias que vivem lá também sofrem consequências indiretas do rompimento da barragem. “A agricultura pagou por um erro que não cometeu”, diz Valéria Carneiro, que costuma representar o assentamento em entrevistas e outras aparições públicas.
O assentamento se sustenta com a venda de legumes, frutas e verduras para clientes individuais e para o governo, fornecendo merenda para escolas públicas, como parte do Plano Nacional de Alimentação Escolar.
No entanto, em 2019, viu o número de contratos fechados cair de 60 (em 2018) para 12 — tudo, segundo Valéria, por receio dos clientes de que os produtos estariam contaminados com os componentes químicos presentes na lama de rejeitos de mineração que inundou o vale.
“Não tem divulgação das áreas que foram realmente afetadas, não tem uma ferramenta para desmistificar isso”, critica Valéria. “As pessoas dizem para a gente, ‘quero comprar, mas como me garante que não está contaminado?'”
“Eu mesma tive que passar o trator em cima de uma plantação de abobrinha porque não tinha comprador para elas”, diz a agricultora.
Segundo ela, há muitos trabalhadores do campo endividados e, consequentemente, caindo em tristeza profunda. “2018 foi um ano bom para a gente, então muita gente pegou empréstimo para ampliar sua produção. Aí veio o rompimento da barragem, a produção caiu e as pessoas não conseguem pagar esse investimento. Quem não consegue pagar sofre.”
Logo após o incidente, a Vale deu R$ 15 mil para 91 produtores rurais e comerciantes e R$ 50 mil para proprietários rurais com atividades produtivas na Zona de Autossalvamento — a região de proximidade imediata à barragem. Mas esse não foi o caso do assentamento.
“Foi feito um trabalho com os afetados diretos, mas uma coisa dessas tem efeito dominó”, diz Valéria.
A Defensoria Pública de Minas Gerais assinou Termo de Compromisso com a Vale para o pagamento de indenizações extrajudiciais. O órgão avalia que não há como mensurar o número de agricultores atingidos com direito a reparação.
“Isso porque o Termo de Compromisso contempla uma ampla diversidade de atingimento sujeita a reparação, e todos aqueles com alguma perda nos mais variados graus são considerados atingidos, independentemente de estarem ou não na área geográfica alcançada pela lama”, diz o órgão, em nota.
“Desde o agricultor que perdeu uma pequena plantação até aquele que perdeu toda uma propriedade, ou teve sua terra desvalorizada (provavelmente todos), ou perdeu renda por fuga de compradores ou por dificuldade de escoamento, entre outras das mais diversas situações.”
Até o momento, 76 produtores rurais procuraram a Defensoria em busca dessas indenizações. Destes, 33 fecharam o acordo e 43 já aceitaram as condições e aguardam os trâmites legais.
Em relação às atividades rurais, a Vale diz que tem uma equipe especializada para o atendimento. “Caso necessário, órgãos competentes como Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) são acionados para análise técnica.”
“Além disso, toda atividade econômica em áreas diretamente afetadas pelo rompimento é passível de solicitação para indenização e a empresa permanece em diálogo aberto com as comunidades. A Vale está também garantindo o fornecimento de água potável e mineral para irrigação, dessedentação animal e consumo humano para todas as propriedades que não são atendidas pela Copasa e captavam diretamente no rio Paraopeba. A empresa também forneceu bebedouros, ração e cercas para evitar o contato dos animais com o rio”, diz a Vale, em nota.
Também para esses agricultores que não foram afetados diretamente, a memória daquele dia tem consequências emocionais.
Valéria diz que sente como se “tivesse sido aprisionada em um dia. Amanhece, anoitece e é dia 25 de janeiro.” Naquela tarde, ela havia sentado para almoçar quando um amigo ligou para o seu celular dizendo “corre, a barragem rompeu, está matando todo o mundo aqui”.
“Saímos correndo sem saber para onde. Quando chegamos num lugar alto, vi a cena. Era como uma massa de bolo carregando tudo — casa, poste, carro. Penso nisso todos os dias.”
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