De onde vem o que eu como: do café ao feijão, quase metade da produção do campo passa por cooperativas
O café com leite ao acordar, o arroz com feijão na hora do almoço…por trás desses eventos tão cotidianos é bem provável que exista o trabalho de uma cooperativa agropecuária.
Isso porque quase metade do que vem do campo passa por produtores rurais associados a cooperativas. Hoje, elas produzem 75% do trigo do Brasil e lideram o cultivo do café (55%), milho (53%) e soja (52%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Boa parte do leite (46%) e do feijão (43%) também passa por elas.
Pequenos agricultores e pecuaristas fundam essas organizações com o objetivo de ganhar maior poder de negociação na compra de matérias-primas, maquinários e serviços, em meio ao mercado cada vez mais competitivo do agronegócio.
Muitas delas já são grandes líderes do setor e possuem faturamentos bilionários, como é o caso da Coamo, Copersucar, Cotrijal e Cooxupé, por exemplo. Outras são marcas conhecidas entre os brasileiros, como a Aurora, Batavo e Frimesa.
Ao todo, 1.613 cooperativas atuam no Brasil oferecendo suporte a 1 milhão de produtores, dos quais 71,2% estão ligados à agricultura familiar. Juntas, elas empregam 209,8 mil pessoas e faturam cerca de R$ 200 bilhões ao ano, de acordo com a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB).
Como funcionam as cooperativas no campo — Foto: G1
Pandemia
A crise econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus também chegou nas cooperativas, principalmente nas menores.
O analista técnico da OCB, João Prieto, conta que muitos produtores tiveram perdas relevantes, principalmente os que trabalham com produtos perecíveis, como frutas e hortaliças que precisam ser escoadas rapidamente.
Cooperados da agricultura familiar que participam de políticas do governo, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), também estão tendo perdas. Logo que a pandemia começou, em março, os estados e municípios interromperam as compras com a paralisação das aulas.
Para tentar amenizar os impactos, o governo promulgou, no início de abril, a lei 13.987/2020 que prevê a distribuição de alimentos para os alunos beneficiários do Pnae, em situações de emergência e calamidade pública.
Porém, nem todos os governos estão aderindo à medida. Uma reportagem do Globo Rural mostrou que, em Minas Gerais, por exemplo, apenas 5% dos municípios mantiveram suas compras. No estado, 17 mil produtores fazem parte da Pnae.
Produtores de MG que fornecem alimentos para merendas sentem impacto da pandemia
Outro desafio atual é a contenção da disseminação de Covid-19 entre os trabalhadores de cooperativas que estão ligadas à cadeia de frigoríficos. “Essas cooperativas estão tendo que mudar toda a forma de trabalhar para poder garantir a segurança dos trabalhadores”, diz Prieto. Em junho, o governo criou regras para a prevenção e controle da Covid em frigoríficos e laticínios.
Saída para permanecer no campo
Cooperada trabalha na produção agropecuária, no Rio Grande do Sul — Foto: Divulgação Fecoagro/ Iago Carvalho
O cooperativismo é uma das saídas para o pequeno produtor rural conseguir permanecer no campo, avalia o ex-ministro da Agricultura (2003-2006) e professor da FGV, Roberto Rodrigues.
Ele, que vem de uma família de cooperados, já viu muito produtor ser expulso da zona rural com a crescente concentração do setor nas mãos de multinacionais.
“As grandes empresas têm recursos para incorporar tecnologias que reduzem custos, aumentam a produção e agregam valor ao produto final. Já o pequeno agricultor não tem dinheiro e nem tempo de fazer isso sozinho”, afirma o ex-ministro.
Segundo IBGE, 63,8% dos cooperados recebem assistência técnica no campo, enquanto somente 20,2% do montante total de produtores do país tem acesso a esse serviço.
“Sem comprar tecnologia, ele não aumenta a produtividade. E sem aumentar produtividade, ele fica sem renda. É um círculo vicioso trágico que precisa ser rompido, ou com política pública, ou com cooperativismo”, enfatiza o professor.
Na comunidade de Cará, em Goiás, por exemplo, o cooperativismo foi a saída para produtores locais aumentarem a produção de mandioca e polvilho e, assim, venderem mais, o que melhorou a renda de 51 famílias.
Cooperativismo transforma comunidade rural em Goiás
Crescer sem se afastar dos produtores
Um dos desafios das cooperativas hoje é ganhar mercado sem se distanciar dos produtores. “Quanto mais as cooperativas crescem, mais elas viram uma empresa e se afastam dos produtores”, diz Ademir de Lucas, professor da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” da USP (ESALQ/USP).
Esse afastamento, segundo ele, acontece por diversas razões. Uma delas é que algumas cooperativas, para aumentar o lucro, começam a abrir novos negócios que não têm uma relação direta com a atividade dos produtores, distanciando-se, dessa forma, dos interesses deles.
Representação
A representação nas assembleias também pode ficar mais difícil. “Tomar decisões em uma organização com mais de 20 mil cooperados, por exemplo, é um desafio. Por isso, em algumas delas, os associados elegem delegados locais, que passam a representá-los nas assembleias”, diz Prieto.
“Quando as cooperativas são pequenas, o produtor tem mais poder de decisão. Por outro lado, elas têm menos poder de pressão política e econômica”, afirma Ademir.
Manter o engajamento
Cooperados trabalham juntos no campo — Foto: Cotrijal/Divulgação
Outro desafio é manter o produtor engajado na cooperativa, pagando mais pela mercadoria dele do que outras empresas.
“Não tem nenhuma regra que impeça o cooperado de vender para outros negócios. Mas, se ele faz isso, fica mal visto dentro da organização e participa menos da distribuição das sobras, pois quanto mais você compra e vende dentro da cooperativa, maior é a sua parcela no lucro”, explica Silvio Castro, professor da Unicesumar.
Muitas cooperativas têm dificuldade de pagar mais ao produtor, porque elas precisam, ao mesmo tempo, vender as mercadorias por um preço competitivo, já incluindo os seus custos.
Entre o socialismo e o capitalismo
A filosofia cooperativista surgiu na primeira metade do século 19, na Europa, como uma resposta à concentração de renda e dos meios de produção, durante a primeira Revolução Industrial.
No período, novas tecnologias, como a máquina a vapor e o tear mecânico, substituíram o trabalho de pequenos artesãos pela produção industrial. Com isso, quem fazia roupa em casa, por exemplo, perdeu trabalho para a crescente indústria têxtil.
A primeira cooperativa da história foi fundada em 1844, na cidade de Rochdale-Manchester, na Inglaterra, por 28 trabalhadores (27 homens e uma mulher) que se uniram para montar o seu próprio armazém.
“Nos anos de 1840, o cooperativismo era visto como a terceira via para o desenvolvimento: entre o socialismo e o capitalismo”, conta Rodrigues.
O modelo foi trazido para o Brasil pelos imigrantes europeus, principalmente alemães e italianos, o que explica a concentração de cooperados nas regiões Sul (55,1%) e Sudeste (34,1%).
A primeira cooperativa agropecuária do país foi fundada no Paraná, em 1847. Mas somente a partir de 1907 que o setor ganhou impulso.
Apesar disso, o cooperativismo brasileiro só foi organizado por um regime jurídico em 1971, com a promulgação da lei 5.764 que instituiu regras para o setor.
Atualmente, o cooperativismo é visto como uma filosofia de inserção econômica e social, segundo Rodrigues, da FGV. Econômica, porque, ao se unirem, os produtores têm mais força para sobreviver no campo e gerar renda. E social, porque ao terem recursos, acessam direitos fundamentais, como moradia, alimentação, educação e saúde.
Partilhando os ganhos
No final de todo o ano, geralmente, os cooperados dividem os ganhos das vendas, depois de descontar todos os custos. O que é o “lucro” de uma empresa normal, é chamado de “sobra” pelas cooperativas.
Algumas delas chegam a gerar uma “bolada” para os agricultores, maior do que muito prêmio da Mega-sena. Em dezembro de 2019, agricultores de uma cooperativa de Campo Mourão (PR), por exemplo, dividiram R$ 100 milhões de sobras.
Cooperativa divide R$ 100 milhões de lucro no Paraná
O que é feito com o dinheiro da “sobra” tem que ser decidido em assembleia. O recurso também pode ser direcionado para investimento.
A assembleia é, inclusive, o órgão máximo de todas as decisões de uma cooperativa. Ela precisa acontecer até mesmo para fundar a organização, ocasião na qual os cooperados formulam o estatuto, decidem sua sede e as cotas de contribuição de cada membro. As cotas formam o capital social da cooperativa.
Sempre quando um agricultor ou pecuarista entrega o seu produto para a cooperativa, a organização precisa remunerá-lo imediatamente. Isso se chama “ato cooperativo”. Depois dessa etapa, os funcionários da associação ficam responsáveis pelo armazenamento, comercialização e/ou industrialização dos produtos.
As cooperativas podem ser singulares ou centrais. Elas são “singulares” quando formadas por apenas uma cooperativa. E são “centrais” quando três ou mais cooperativas se juntam para atuar em algum ramo.
Elas podem exercer uma ou mais das seguintes atividades:
- Compra de insumos: como sementes, fertilizantes, máquinas e equipamentos
- Organização da armazenagem, comercialização e processamento dos produtos
- Contratação de assistência técnica: veterinários e engenheiros agrônomos, por exemplo
- Construção de uma indústria própria