Corinthians: a paixão da torcida que transforma ídolos em vilões
A maior contradição do Corinthians é que ele tem a mesma essência da Constituição brasileira, em seu artigo 1º. “Todo poder emana do povo”. O Corinthians também nasceu do povo, desde a decisão de 10 operários de fundá-lo no Bom Retiro, com o lema idealizado pelo seu primeiro presidente, o alfaiate Miguel Battaglia: “O Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time”.
O contraste é que, enquanto uma, a Constituição, é movida pela razão da lei, o outro, o Corinthians, se infla de uma paixão irracional em momentos de dificuldade.
Todos os clubes do Brasil, é verdade, têm um tipo de paixão como origem. Principalmente os grandes.
Mas, como os próprios fatos vêm mostrando ao longo dos anos, o Corinthians é o único no qual torcedores se voltam com frequência contra os próprios ídolos, aqueles que os fizeram se embevecer de alegria nas comemorações pelas madrugadas afora.
E assim craques foram para a guilhotina moral de parte das arquibancadas, muitas vezes tendo de se despedir precocemente do clube para o qual deram alegrias.
O caso mais conhecido foi o supercraque Rivellino, em 1974, que deixou o Corinthians, pressionado pela torcida por causa da derrota para o Palmeiras, na final do Paulista.
Os mais recentes ídolos pressionados foram Cássio e Fágner, após a segunda derrota consecutiva da equipe no Brasileirão e um certo flerte com a agora já distante zona de rebaixmento. Como goleiro do time, Cássio foi campeão da Libertadores (2012), Mundial de Clubes (2012), do Paulista (2013, 2017, 2018 e 2019), da Recopa Sul-Americana (2013) e do Brasileiro (2015 e 2017). Fágner venceu duas edições do Brasileiro (2015 e 2017) e três do Paulista (2017, 2018 e 2019).
Nem esse acúmulo de conquistas foi suficiente para aplacar o ânimo dos torcedores que, no aeroporto, após a derrota para o Fluminense, por 2 a 1, no último domingo (13), “peitaram” os jogadores, inclusive com xingamentos a Cássio.
O time já havia perdido para o rival Palmeiras, em casa, que o deixou próximo da das últimas colocações. A vitória sobre o Bahia, na última quarta-feira (16), não foi suficiente para apagar a mágoa dos jogadores, principalmente do goleiro Cássio.
Ele foi acusado de falhar em jogos contra o São Paulo e Botafogo, se mostrou incomodado com a situação. Fágner, após fazer um pênalti e ser expulso por colocar a mão na bola, contra o Palmeiras, viu seu filho de 10 anos ser ameaçado pelas redes sociais.
Qual a explicação para isso? Ingraditão? Loucura? Tempos de violência que acirram os ânimos?
Para o ex-jogador Paulo Sérgio, formado nas categorias de base do Corinthians, essa característica, às vezes para o bem, às vezes para o mal, faz parte do ar que se respira no clube.
“O Corinthians sempre foi movido por essa questão de raça, da obrigação do jogador de se doar. Comecei no clube com 13 anos e desde aquela época já havia essa cobrança de quem ia ao Parque São Jorge, de ter de mostrar garra, coração, de vestir a camisa. Não importa a idade. Um dia apareci de verde no clube e não me deixaram nem entrar”, lembra.
Ele observa que o jogador que chega tem de estar preparado para essas situações.
“Muitos jogadores chegam e não conhecem a realidade do clube. Então se espantam. Mas, para aquele que vestir essa camisa, a exigência é saber que vai haver uma cobrança muito forte. Se é certo ou errado, não dá para dizer. Mas isso vai sempre existir”, ressalta.
Outro que jogou no Corinthians, o ex-ponta Edu, ídolo do Santos nos anos 60 e 70, entende que essa relação com o torcedor tem de ser vista pelo lado positivo. Edu fez parte do elenco campeão paulista pelo Corinthians em 1977.
“Quando o time vai mal a cobrança existe e sempre existiu. Mas minha relação com a torcida corintiana foi sempre muito boa e conseguimos o que todos os torcedores querem, o título. Porém, hoje os torcedores são mal-educados e há muitas pessoas mal-intencionadas infiltradas como torcedores”, diz.
Há anos a torcedora Wanda La Selva, irmã do fundador da Gaviões da Fiel, Flávio La Selva, e sócia da organizada, testemunha situações em que a torcida do Corinthians literalmente participa das decisões da diretoria. Flávio, afinal, frequentava a casa do presidente Vicente Matheus.
Na época em que o ídolo Wladimir estava sem contrato, foi ele quem levou o cheque para a renovação, dado pelo empresário Bernardo Goldfarb, ao presidente, que imediatamente recusou. O dinheiro, conforme conta Wanda, foi para a torcida, a pedido do empresário.
“De todas, a torcida que mais se envolve com o clube é a do Corinthians. É impressionante, é um time realmente do povo, porque é alegria, é emoção, é o que o povo tem. A cobrança maior sempre foi em relação aos jogadores. Vivi isso com Rivellino. Mas acho que quem deve ser cobrado primeiro são o presidente e a diretoria. O Flávio procurava fazer isso. Ele frequentava a casa do Matheus e o próprio presidente dizia que ele ia lá para defender os torcedores. Quando o Flávio morreu, o Matheus disse que tinham divergências, mas que sempre foram honestas e transparentes”, observou.
Em relação aos jogadores, ela admite que, depois da diretoria, pode haver cobranças, mas sem nenhum tipo de violência.
“Membros da diretoria me falaram que, no caso mais recente no aeroporto, não houve violência, os jogadores se assustaram. E não pode haver mesmo violência nenhuma. A cobrança tem de ser apenas verbal”, ressaltou.
Também os dirigentes, muitas vezes, não sabem o que fazer diante deste turbilhão de emoções, conforme explica Flávio Adauto, que está no futebol há cerca de 50 anos, grande parte deles como jornalista mas, durante quase um ano e meio (entre 2016 e 2018), como diretor de futebol.
“Num primeiro momento, o dirigente se sente impotente nestas situações. Mas depois, para se recompor, ele precisa saber que não são fatos inusitados, fazem parte da história do clube, sempre que este passa por um momento difícil. O cara que assume no Corinthians tem de saber que precisará dialogar com todas as partes: torcida, imprensa, diretoria, jogadores”, diz.
Adauto acredita que, por causa do tamanho da torcida, os acontecimentos acabam causando um impacto muito maior.
“No meu caso, fui um felizardo por ter vivido bons momentos, sem grandes crises e com títulos, mas havia uma ou outra cobrança pontual e deu para perceber o quanto qualquer fato que ocorre no Corinthians ganha uma enorme repercussão, diante da dimensão imensa que esse clube tem”, observa.
Acontece que também entre os clubes grandes, incluindo o Flamengo, o Corinthians se diferencia na relação com seu torcedor. Ela tem uma pitada maior de paixão, mas Adauto afirma não ser possível decifrar em palavras a fórmula deste tempero.
“O Corinthians tem algo muito diferente. Em relação ao posicionamento dos torcedores, no comportamento dos dirigentes com a torcida. Qual grande clube tem sua torcida crescendo tanto depois de 22 anos sem um título? O Corinthians retrata em alto grau essa essência do brasileiro de crescer na adversidade. Não é só no Esporte. É algo que simboliza uma questão social, que engloba a sociedade”, comenta.
E completa.
“O Corinthians acumula o maior número de comedidos, o maior número de exaltados. Sociólogos, psicólogos tentam explicar o Corinthians, mas sempre há algo mais a ser explicado. Ninguém consegue decifrar. É um clube a ser permanentemente analisado, estudado, para ver onde chega”.
Frank Sinatra, ensandecido de ciúmes da sua companheira, a atriz Ava Gardner, despedaçava as fotos da musa e, depois, chorando arrependido, se debruçava no tapete tentando remontá-las. Era um amor, em parte, semelhante ao de um torcedor.
No Corinthians, neste emaranhado de emoções, onde o amor por uma vitória se transforma em ódio pela derrota, há, no entanto uma cláusula pétrea que, tirando a violência e o desrespeito, tudo perdoa. É a paixão de uma torcida. A única, afinal, a ser conhecida como Fiel.
R7