Brasil já testa carros abastecidos com esgoto; conheça a tecnologia
Gás extraído de dejetos, biometano é 100% renovável e tem custo 56% menor que o do diesel
No segundo filme da franquia “De Volta para o Futuro” (1989), Doutor Brown abastece o DeLorean usado para viajar no tempo com lixo doméstico (casca de banana, cerveja e a lata em si…), por meio de um dispositivo instalado no próprio veículo, chamado de “Senhor Fusão”. Na trama, o cientista havia trazido o equipamento para converter dejetos em combustível diretamente do futuro: naquele caso, de 2015.
Pois a ficção antecipou a realidade: agora, em 2017, ainda não dá para colocar uma casca de banana no tanque e sair rodando, mas já existe tecnologia no Brasil para gerar combustível automotivo de gases de esgoto, do lixo, de restos de alimentos, resíduos da agricultura e até de titica de galinha.
Trata-se do biometano, versão refinada do biogás, que é extraído de matéria orgânica em decomposição por meio de equipamentos chamados de biodigestores.
O biometano pode abastecer qualquer veículo com kit de GNV, que você já conhece. Mas, diferentemente do gás natural veicular, que tem origem fóssil como a gasolina e o diesel, o biometano é 100% renovável.
De acordo com o CIBiogás (Centro Internacional de Energias Renováveis/Biogás), o biometano pode reduzir em até 90% as emissões de poluentes na comparação com a gasolina. Seu uso previne ainda o lançamento de metano na atmosfera, um dos vilões do aquecimento global (o outro é o CO2).
Cadê?
O abastecimento do biometano em automóveis já tem uma regulamentação geral elaborada pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) desde fevereiro de 2015. Mesmo assim, ainda não é oferecido nos postos de combustível no país.
Por enquanto, apenas o biogás — utilizado para geração de energia térmica e elétrica — já é uma realidade, mas que também tem muito a crescer no Brasil.
Esse combustível sustentável já está em testes em indústrias e empresas e vai chegar ao mercado em breve. A Sulgás (Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul), por exemplo, anunciou em janeiro que lançará, durante os próximos meses, uma chamada pública para aquisição de até 200 mil metros cúbicos por dia de biometano, que será comercializado.
Enquanto isso, algumas empresas do Brasil já trabalham para produzir biometano e abastecer parte dos seus automóveis. Uma delas é a Sabesp (Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo), e outra, o complexo hidrelétrico Itaipu Binacional, em Foz do Iguaçu (PR).
Esgoto combustível
A Sabesp será a primeira do país a produzir biometano exclusivamente a partir do lodo que resulta do tratamento de esgoto, na unidade de Franca, no interior paulista.
A produção começa em meados deste ano e conta com parceria do Instituto Fraunhofer, da Alemanha, que cedeu o equipamento necessário para converter o biogás resultante do esgoto em biometano. Essa tecnologia remove impurezas do biogás para aumentar a concentração do metano para acima de 96%, atendendo às especificações da ANP para uso veicular.
A estimativa é produzir todos os dias biometano suficiente para substituir 1,7 mil litros de gasolina e abastecer cerca de 50 automóveis adaptados com kits GNV — aproximadamente 20 desses veículos já estão prontos para receber o biometano.
Quando começar a ser produzido, o combustível sustentável passará por uma fase de testes com acompanhamento dos órgãos reguladores, como a ANP, para garantir o atendimento às especificações. A ANP informou que já “está trabalhando” na regulamentação especifica para biometano oriundo de aterros sanitários e estações de tratamento de esgoto.
“A utilização do gás gerado no tratamento de esgotos como combustível veicular resulta em ganhos econômicos e benefícios para a sociedade e o meio ambiente. Isso significa uma redução do consumo de combustíveis fósseis e da emissão de gases de efeito estufa”, avalia Cristina Zuffo, superintendente de Pesquisa e Desenvolvimento da Sabesp.
Cocô de galinha move carros no PR
A Usina de Itaipu, por sua vez, já conta com uma frota de 59 veículos movidos a biometano, de um total de 249 unidades da empresa. Até o fim do semestre, serão mais 14 que serão abastecidos com o biocombustível, substituindo modelos convencionais. Também há 55 veículos elétricos.
O biometano utilizado em Itaipu provém, literalmente, de titica de galinha. Em parceria com o CIbiogás, instituição tecnológica e científica sem fins lucrativos, ele é gerado na granja Haacke, localizada no município de Santa Helena (PR), próximo a Itaipu. Desde de 2013, são processados na granja cerca de 100 m³ por dia de efluentes líquidos, provenientes do excremento das aves, produzindo diariamente 1.000 m³ de biogás. Esse biogás depois é refinado para se transformar em biometano, destinado para abastecer os automóveis e também para gerar energia elétrica, utilizada na própria granja.
Até o fim do semestre, a CIbiogás e a Itaipu Binacional vão inaugurar uma unidade de produção de biometano dentro da própria usina, complementar à existente em Santa Helena. Essa planta vai usar como matéria-prima grama, esgoto e restos de alimentos recolhidos em restaurantes da região.
Ônibus verde
Enquanto a cadeia de produção, distribuição e comércio de biometano ainda engatinha no Brasil, ela já está consolidada na Europa. De acordo com Silvio Munhoz, diretor de vendas de ônibus da Scania no país, cerca de 40% dos ônibus que hoje rodam na Suécia (onde fica a matriz da marca) já são abastecidos com biometano.
Vendo potencial no mercado brasileiro, a Scania trouxe em 2014 um ônibus da marca abastecido tanto com GNV quanto com biometano. Importado da Suécia, esse ônibus rodou em testes em diferentes locais, projetos e feiras envolvendo biogás e biometano no país e foi substituído por outro, já montado no Brasil, que também está circulando pelo país.
De acordo com a Scania, a média de consumo do biometano é ligeiramente inferior à do diesel (2,02 km/m³ contra 2,2 km/l), mas tem custo aproximadamente 30% menor. “Em relação ao preço por quilometragem, o custo do biometano é menor ante um veículo similar a diesel. A partir de um problema das cidades, que é a gestão de resíduos, é economicamente viável para qualquer centro urbano de nosso país”, afirma Munhoz.
Alto potencial
De acordo com números fornecidos pela ABiogás (Associação Brasileira de Biogás e de Biometano), o potencial de crescimento desses combustíveis no mercado brasileiro é gigantesco. Segundo a entidade, o Brasil poderia produzir 52 bilhões de metros cúbicos de biogás a cada ano, volume suficiente para abastecer cerca de 25% da frota nacional de veículos — além de 12% de toda a demanda por energia elétrica no país.
“Chegamos ao ápice do sistema de combustíveis líquidos, especialmente diesel e gasolina. Vivemos em um mundo de recursos energéticos finitos, precisamos extrair petróleo e gás a quilômetros de profundidade no oceano, a um custo elevado. As novas saídas não terão um combustível quase hegemônico como hoje e, sim um conjunto de alternativas”, avalia Cícero Bley Jr, presidente da associação.
Bley Jr espera que o RenovaBio, plano do Ministério de Minas e Energia para ampliar a participação de biocombustíveis na matriz energética do país até 2030, bem como atender as metas de emissões estabelecidas na COP21 (cúpula do clima de Paris), contemple também incentivos e uma política definida para o biogás. “Está mais que na hora de haver uma política de governo definida para o biogás e o biometano. O Brasil já dispõe de tecnologia para isso”.
Consultado, o Ministério de Minas e Energia informou que “entre os biocombustíveis que serão atendidos no programa, estão o etanol de segunda geração, o biodiesel de óleo vegetal hidrotratado, o bioquerosene, o diesel de cana, o biogás/biometano e o bioquerosene”. Ainda de acordo com o órgão do Governo Federal, “está prevista a realização de reunião no dia 15 de março, no Ministério de Minas e Energia, para que todos interessados possam conhecer as diretrizes que embasarão o RenovaBio. O resultado de todo processo deverá ser consolidado e disponibilizado para consulta pública até o final do primeiro trimestre de 2017”.
Agora é acompanhar a trama política e torcer para o biometano não fica só como peça de ficção científica.
Fonte: Uol