Atualização sobre infecção congênita por citomegalovírus
O citomegalovírus (CMV) é a causa mais frequente de infecção congênita (com transmissão intrauterina da mãe para o feto), sendo que aproximadamente 25% das crianças terão sequelas como perda auditiva neurossensorial e comprometimento do neurodesenvolvimento. Em novembro de 2023, um grupo italiano de obstetras e neonatologistas italianos liderado por Salomé publicou uma revisão na revista Frontiers in Pediatrics sobre infecção congênita por citomegalovírus. Neste artigo, destacaremos os principais pontos dessa revisão.
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Qual é a fisiopatologia da infecção fetal por CMV?
O citomegalovírus humano tem como hospedeiro exclusivo o ser humano, sendo endêmico mundialmente. As infecções podem ocorrer porque a gestante teve uma primo-infecção por CMV ou não primária (uma reativação do CMV latente ou uma reinfecção por uma nova cepa desse vírus), com risco de transmissão fetal de 30-35% na primo-infecção e menor risco na não primária. O risco de transmissão aumenta conforme aumenta a idade gestacional, mas a gravidade é maior se ocorrer no 1º trimestre.
São fatores de risco para infecção congênita por citomegalovírus: gestante jovem, ter ao menos um filho previamente, nível socioeconômico baixo, populações com alta soroprevalência de CMV e HIV.
A lesão cerebral pelo citomegalovírus é multifatorial, resulta de intensa replicação viral, resposta imune celular e insuficiência placentária por conta de hipóxia fetal.
Ainda não sabemos se a perda neurossensorial tardia por conta da infecção do CMV decorre da replicação viral em si ou pela resposta imunológica do hospedeiro.
Quando suspeitar que a gestante está com infecção por CMV e como tratá-la?
A maioria das gestantes com infecção por CMV são assintomáticas, mas em 1/3 dos casos pode ocorrer febre baixa, síndrome gripal, astenia e mialgia. Em metade dos casos, ocorre linfocitose (>40% de linfócitos) e aumento de enzimas hepáticas.
Como a dosagem de anticorpos contra CMV em gestantes não é feita de rotina em vários países, apenas as gestantes sintomáticas ou com alterações fetais ultrassonográficas ou na ressonância magnética* sugestivas dessa infecção são testadas com IgM e IgG anti-CMV.
*As seguintes alterações radiológicas fetais são sugestivas dessa infecção: calcificações intracranianas, calcificações hepáticas, cistos subependimários, efusão pericárdica, hepatomegalia, microcefalia, restrição de crescimento intrauterino (CIUR), ventriculomegalia (leve a moderada <15mm ou grave > 20mm).
Salomé e colaboradores sugerem que seja feita triagem sorológica em gestantes assintomáticas a partir de 6-7 semanas, depois a cada 4 semanas até 24 semanas de idade gestacional se forem soronegativas para CMV.
Caso a gestante venha com com IgM anti-CMV positivo, solicitar com teste de avidez de IgG anti-CMV para excluir ou confirmar infecção primária recente. Se a IgG tiver alta avidez significa que a infecção ocorreu há mais de 3 meses e se tiver baixa avidez reflete infecção recente (há menos de 3 meses).
Diante desse teste de avidez baixo ou intermediário no 1º trimestre, considerar valaciclovir 8 gramas/dia para a gestante até que seja possível a amniocentese. O uso de valaciclovir pode reduzir a taxa de transmissão vertical de CMV até 71% em um estudo duplo-cego randomizado e a taxa dos casos sintomáticos.
Se for uma gestante soropositiva para citomegalovírus antes da gestação, o diagnóstico da infecção não primária é feito por PCR para CMV sanguíneo, urinário ou salivar.
Como é feito o diagnóstico de infecção fetal por CMV e como tratá-la?
Pode ser feito por detecção do DNA do CMV por PCR em uma amostra de líquido amniótico (obtido por amniocentese após 17 semanas de idade gestacional e pelo menos 6-8 semanas da suspeita de infecção da gestante), que é o padrão ouro. A investigação ocorre quando a ultrassonografia fetal é sugestiva de infecção por CMV, após triagem sorológica da gestante positiva no pré-natal ou após a gestante ser sintomática para infecção por CMV.
Devemos lembrar que o acolhimento da gestante e sua família é muito importante assim como o acompanhamento por psicólogo. Avaliar valaciclovir 8 gramas/dia para a gestante se for um quadro de infecção fetal moderada. Quanto aos casos graves, o artigo por ser italiano refere que lá discutem a interrupção da gestação, a qual não é legalizada no Brasil. Os estudos ainda mostram resultados contraditórios quanto ao uso de globulina hiperimune anti-CMV.
Como é feito o diagnóstico pós-natal de infecção por citomegalovírus congênito?
É feito por detecção do DNA do citomegalovírus por PCR na urina ou na saliva até 21 dias de idade. Se for colhida amostra salivar, atentar para colher pelo menos 1 hora após a amamentação para evitar resultado falso positivo por leite materno contaminado com CMV. Se esse resultado positivo ocorrer após 21 dias de idade, pode ser um caso de infecção adquirida pós-natal.
Como é o quadro clínico dos neonatos e das crianças com CMV congênito?
O quadro clínico pode ser:
- Assintomático;
- Com perda auditiva neurossensorial isolada;
- Leve: com 1 ou 2 manifestações isoladas transitórias leves ou insignificantes como petéquias, hepatomegalia leve, esplenomegalia leve, anemia, leucopenia, plaquetopenia, leve aumento de enzimas hepáticas ou pequeno aumento de bilirrubina direta, baixo peso ao nascer (sem microcefalia);
- Moderado: quando tem mais de duas manifestações leves ou alterações hematológicas/bioquímicas que persistem por mais de duas semanas;
- Grave: quando há:
- acometimento de sistema nervoso central (SNC) compatível com infecção por CMV ex. coriorretinite, microcefalia, neuroimagem alterada (calcificações, cistos, ventrciulomegalia, alterações na substância branca, displasia hipocampal, alterações na migração neuronal, e/ou hipoplasia cerebral ou cerebelar);
- doença ameaçadora da vida;
- acometimento grave de um órgão (ex. falência hepática);
- acometimento de mais de um órgão.
Algumas classificações não separam os quadros moderados dos graves.
Como tratar neonatos e lactentes enfermos por infecção por citomegalovírus congênito?
Ganciclovir e valganciclovir são os antivirais de primeira escolha para neonatos enfermos e não só infectados. Estão claramente indicados em neonatos com acometimento de SNC. Já a indicação de tratar casos moderados deve ser avaliada caso a caso pela equipe médica assistente. Não é recomendado o tratamento em casos leves. Não há consenso se deveríamos tratar pacientes com perda auditiva neurossensorial isolada.
O uso de ganciclovir por seis meses via endovenosa melhora os desfechos auditivos e de neurodesenvolvimento nos casos sintomáticos com acometimento de SNC. O tratamento padrão atual para lactentes sintomáticos é feito com valganciclovir 16mg/kg/dose de 12/12 horas via oral (se for possível fazer via oral) por induzir menos neutropenia significativa que o ganciclovir endovenoso.
É primordial que todos os pacientes tenham seguimento por pediatra geral, avaliação auditiva e oftamológica com potencial evocado auditivo de tronco encefálico (PEATE). Devem ocorrer avaliações auditivas para todas as crianças infectadas até pelo menos 5 anos de idade. Avaliar para cada paciente a necessidade de acompanhamento por neuropediatra, oftalmologista, fisioterapeuta, nutricionista, fonoaudiólogo e/ou outros especialistas.
Como prevenir infecção congênita por citomegalovírus?
Para preveni-la é importante que as gestantes sejam orientadas a lavar as mãos após pegar objetos que foram tocados principalmente por crianças, não dar beijos na bochecha ou nos lábios de crianças, evitar compartilhar talheres, copos e comida.
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Conclusão
O acolhimento pela equipe multiprofissional (idealmente incluindo psicólogo) deve ser realizado em todas as etapas da investigação e tratamento para esclarecer todas as dúvidas da família e o prognóstico diante dos resultados já apresentados.
O adequado acompanhamento obstétrico com triagem sorológica fetal universal oportuniza a realização de valaciclovir durante a gestação de quadros de infecção, proporcionando redução na taxa de transmissão intrauterina de CMV ou da taxa de casos sintomáticos.
Por sua vez, o acompanhamento da equipe pediátrica permite tratamento antiviral com ganciclovir/valganciclovir dos pacientes com acometimento do SNC, encaminhamento para neuropediatra, avaliação auditiva e oftalmológica, a fim de oferecer o melhor tratamento e terapias de estimulação para os pacientes e suas famílias.
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Autor
Graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ⦁ Residência em Pediatria Geral pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) ⦁ Residência em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) ⦁ Mestre em Saúde Materno-Infantil pela UFRJ
- Salomè S, Corrado FR, Mazzarelli LL,Maruotti GM, Capasso L, Blazquez-Gamero D, Raimondi F (2023) Congenital cytomegalovirus infection: the state of the art and future perspectives. Front. Pediatr. 11:1276912. DOI: 10.3389/fped.2023.1276912 .