AR corre contra o tempo: “Há pessoas para quem o sonho de ser mãe acabou”
O tempo é relativo. Muitas vezes é coisa rara e disso nos queixamos diariamente. Para as mulheres que tentam engravidar através da reprodução medicamente assistida, pode, porém, ser um absoluto drama, principalmente depois do chumbo do Tribunal Constitucional (TC) em abril passado.
Isabel Moreira, deputada do PS e a primeira subscritora do projeto do PS, volta atrás no tempo para explicar como se chegou a este “impasse” que deixou centenas de vidas em suspenso.
Em 2016, foi aprovada uma alteração à lei da procriação medicamente assistida (PMA) – lei que data de 2006 – que garantiu o acesso a estas técnicas a todas as mulheres, independentemente do seu estado civil ou da sua orientação sexual. Uma medida que fazia parte do programa eleitoral do Governo, tendo, aliás, existido outros projetos no mesmo sentido.
O que mudou com esta alteração de 2016?
A lei passou a englobar as mulheres lésbicas, solteiras, divorciadas, “no fundo, mulheres que não tivessem a tutela’ de um homem”, sublinha Isabel Moreira, ao Notícias ao Minuto. Na lei da PMA, explica, sempre houve o artigo 15º. “que tem por epígrafe confidencialidade estabelecendo o anonimato não absoluto de dadores de gâmetas”.
No entender da deputada, o projeto de lei de 2016 limitou-se a cumprir a Constituição. “Ou seja , acabar com uma lei que tinha uma gravíssima ofensa do ponto de vista do género e do ponto de vista da orientação sexual”, porque “dizia às mulheres – casais de lésbicas, mulheres divorciadas, mulheres solteiras – no fundo às mulheres que não tivessem a ‘tutela’ de um homem – que não podiam ser mães”.
“A inseminação artificial já existia, mas simplesmente estava reservada a casais de sexos diferentes, sendo que nós a estendemos a todas as mulheres, independentemente do estado civil ou orientação sexual”, resume Isabel Moreira, lembrando que a norma da confidencialidade, que já existia na lei, não foi alterada.
A consagração do direito de todas as mulheres a serem mães tocou num ponto terrífico: no tabuleiro do sexismo e no da homofobia
O problema da confidencialidade
Perante este alargamento da procriação medicamente assistida a todas as mulheres, 30 deputados – do CDS e alguns do PSD, entre os quais o deputado Fernando Negrão – pediram a declaração de inconstitucionalidade do anonimato parcial dos dadores.
Ora, o que aconteceu foi que o TC “mudou de doutrina relativamente a 2009”, lamenta a deputada, sinalizando que, “embora tenha negado os fundamentos invocados pelos requerentes e deixado claro que obviamente não há nenhuma violação da dignidade humana, que a averiguação da paternidade não faz sentido, que o dador não é pai, é dador, acabou por declarar inconstitucionais o º.1 e o nº. 4 do artigo 15º”.
Considerou-o com base no direito de a pessoa fruto de uma gravidez de PMA conhecer as origens. E, assim, criou “uma enorme situação de incerteza, porque não limitou efeitos”.
TC, o reflexo do modelo patriarcal da sociedade
Isabel Moreira recorda que em 2009, o TC “teve a oportunidade se pronunciar sobre o artigo 15º.” e que concluiu que “não merecia censura constitucional”. Para a deputada, só uma coisa explica a “mudança de doutrina” dos juízes: A consagração de um direito que dá poder a mulheres incomoda a sociedade sexista e homofóbica.
“O que aconteceu, do meu ponto de vista, é que a consagração do direito de todas as mulheres a serem mães tocou num ponto terrífico – aliás, foi a última conquista igualitária (foi aprovado o casamento, a adoção, a co-adoção – , ao mesmo tempo, no tabuleiro do sexismo e no tabuleiro da homofobia”, observa, notando que de todas as conquistas igualitárias, esta foi a última porque “diz respeito a mulheres, dá poder a mulheres”.
A deputada acredita que a decisão do TC se prende com o facto de esta instituição refletir “um modelo patriarcal que está na sociedade”. Até porque, argumenta, “enquanto eram casais de sexo diferente a recorrer à inseminação artificial, nunca houve problema em haver anonimato do dador, porque o anonimato do dador protegia o marido da mãe. Estava lá para ser o pai, para funcionar como ficção de biologia. Quando aparecem duas mulheres, cai o ‘Carmo e a Trindade'”.
Incoerência de critérios
No seu entendimento, há uma análise que merece ser feita em relação à incoerência de critérios na procriação medicamente assistida e na gestação de substituição. “O TC decidiu, de acordo com aquilo que o CDS entende, esta coisa extraordinária: em relação à inseminação artificial, que o critério é a biologia e que se deve ter direito à identidade do dador, em relação à gestação de substituição, que o critério não é a biologia, é quem carrega o bebé”.
Isto é, “decidiu que a mulher que apenas está a gestar aquilo que é a junção de um óvulo e de um espermatezoide (que não lhe pertence) pode ficar com a criança. O TC decidiu uma nova forma de maternidade que se chama gestação, o que é um absurdo”.
Vidas suspensas, um “caos total”
Lançada a incerteza, precisamente na véspera do dia da Liberdade, eis que a decisão dos juízes do Palácio Ratton começa a ser sentida na pele de quem, arriscamos dizer, faz da concretização da maternidade o sonho de uma vida. Conta a deputada que foi o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida que deu a notícia a todos os grupos parlamentares de “uma situação de desespero total”. “Não só para os casais de lésbicas como para todos os casais de sexo diferente”.
“Há milhares de embriões que correm o risco de ser destruídos, há pessoas para quem o sonho de ser mãe acabou – enquanto esta situação de incerteza não se clarificar – mulheres dispostas a voltarem à clandestinidade”, retrata, prosseguindo: “Há centenas de dadores que, sabendo que poderiam deixar de ser anónimos, deixaram de ser dadores. Houve centenas de beneficiários que iniciaram os ciclos e os tratamentos foram forçados a interromper os mesmos porque o material genético que estavam a usar é proveniente de dador anónimo”. Numa frase: “Criou-se um caos total”.
O que diz o projeto do PS?
Na linha dos dos outros partidos – PSD, do BE, PCP e PAN – o projeto do PS “respeita a decisão do TC” e considera o que disse este órgão de soberania em relação ao encontrar-se uma solução que “dê harmonia à lei depois da inconstitucionalidade”.
“Tendo em conta vários princípios constitucionais, como a tutela das expetativas, o direito à vida privada dos dadores, a estabilidade familiar, a própria tutela ética do embrião, fizemos um projeto de lei em que entendemos como identidade do dador a respetiva identificação civil, portanto, as pessoas terão direito – quem foi concebido através de uma técnica de PMA -, à identificação civil e mais nada. É preciso saber o que é que é a identidade do dador. É o quê? É o Facebook? É a pessoa? É saber a morada? É evidente que não pode ser tudo”, afirma Isabel Moreira.
Por outro lado, o projeto de lei do PS define que a pessoa que tem acesso à identidade do dador não pode, em caso algum, partilhar essa informação com terceiros. Além disso, estabelece um regime transitório que mantém a confidencialidade dos dadores cuja doação seja anterior à decisão do TC [24 de abril] e seja utilizada até cinco anos após a regulamentação da lei.
Em suma, o objetivo é “tentar, por um lado, consagrar de uma forma equilibrada este acesso à identidade do dador, por outro lado, estabelecer a norma transitória para salvar as pessoas que já estavam em processos anteriores ao acórdão do TC”.
E quanto às barrigas de aluguer?
Há o diploma do Bloco de Esquerda sobre a gestação de substituição. E surge também depois de os mesmos 30 deputados terem pedido a fiscalização de constitucionalidade. O Tribunal declarou várias normas insconstitucionais. Mas, “ao contrário do que o CDS queria, não acabou com a gestação de substituição”.
“O CDS entendia que a gestação de substituição ofendia a dignidade da pessoa humana. O TC discordou disso, mas considerou que a lei, apesar de promulgada pelo PR, tinha vários problemas como falta determinabilidade nalguns artigos. Alguns direitos dos intervenientes não estavam assegurados.”
O que é que o BE fez perante isto? “Fez um diploma em que acolhe aquilo que o o TC diz”. Para Isabel Moreira, é um “absurdo” que a gestante possa ficar com o bebé, como propõe o BE. Todavia, realça que “o BE não pode fazer outra coisa nem ninguém”.
Barrigas de aluguer, um ato de generosidade “enorme”. Podem arrepender-se?
Isabel Moreira nota que as mulheres que não podem engravidar por não ter útero “são reais” que “querem desesperadamente ser mães e pais”. E que, “obviamente, para avançarem para uma coisa destas, já sabem quem vai ser a sua gestante: é a irmã, é a melhor amiga, é uma coisa muito estudada, muito falada, ou seja, a hipótese do arrependimento nunca se vai pôr”, defende.
E sobre estas mulheres, de “generosidade enorme”, acrescenta a deputada que devem ser valorizadas e não ser alvo de preconceito.
“Devem ser valorizadas, são mulheres com uma generosidade que eu invejo. Conheci várias dispostas a realizarem o sonho das tais mulheres que nasceram sem útero e dos seus maridos e companheiros e não são pessoas com falta de dignidade. São pessoas com um enorme sentido de altruísmo e que querem ajudar um casal que conhecem muito bem, de quem são muito próximas, muitas vezes são da mesma família, para realizar um sonho. Só quem vive a realidade de uma forma abstrata é que acredita que isto [o arrependimento da gestante] vai acontecer”.
O CDS também vai a ‘jogo’
Para a deputada, o diploma do CDS é “absolutamente hipócrita” e serve para o partido “fingir que vem a debate”. De acordo com Isabel Moreira, o projeto dos centristas, que visa o aumento do número de ciclos nos tratamentos, pede o mesmo que já foi chumbado no Orçamento.
“Portanto, o CDS fez um requerimento ao TC que resultou numa decisão que paralisou a PMA e agora vai para o debate com um projeto de resolução a pedir para que haja mais ciclos, sendo que a PMA está paralisada. (…) O CDS pode dizer até morrer que é contra a PMA, que é contra o casamento gay, que é contra a adoção, está bem, mas isso já está ganho, hoje não vamos discutir isso, vamos discutir o regime da confidencialidade”, conclui.
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