A história das irmãs que mataram o pai abusador e podem acabar presas
Naquela tarde de julho, quando Mikhail Khachaturian chegou em sua casa, no norte de Moscou (Rússia), ficou furioso. Daquela vez porque considerou que a sala estava desarrumada. Tinha visto inclusive um fio de cabelo longo e escuro no chão. E ficou revoltado. No dia anterior, o motivo tinha sido outro. E antes desse, outro. Enfurecido, chamou suas filhas Krestina, Angelina e Maria para a sala, uma de cada vez. E as borrifou com um spray de pimenta que tinha preparado. Depois, dormiu a sesta em sua cadeira de balanço. As garotas, de 17, 18 e 19 anos, não aguentaram mais. Esperaram Mikhail, de 57 anos, dormir e começaram a golpeá-lo com um martelo e uma faca de cozinha, segundo a promotoria. Quando o homem acordou e começou a bater nelas, uma das garotas o esfaqueou até ele cair.
Krestina, Angelina e Maria enfrentam agora, um ano depois do ocorrido, acusações de assassinato premeditado. Com penas de até 20 anos de prisão para as duas mais velhas e 10 anos para a mais jovem, que naquela ocasião era menor de idade. Mas o caso revelou que naquela casa do modesto bairro de Bibirevo, enfeitada com cruzes e outros ícones religiosos, as três garotas de cabelos escuros e enormes olhos castanhos viviam um pesadelo. Levavam anos sofrendo abusos físicos e sexuais de seu pai, segundo os relatórios judiciais, com quem viviam sozinhas desde 2015, quando ele expulsou a mãe das jovens de casa e ameaçou matá-la juntamente com as filhas se ela voltasse para levá-las. “Estavam aterrorizadas. Viviam praticamente escravizadas em um ambiente irrespirável e temiam por sua vida”, assinala um de seus advogados, Alexei Liptser, que alega que as jovens agiram em legítima defesa.
O caso das irmãs Khachaturian abalou a sociedade russa. Também colocou em evidência a constante inação − e até a normalização − das autoridades diante de um problema de dimensões colossais na Rússia: a violência doméstica. Não há estatísticas. Mas, segundo um estudo feito em 2012 pelo Ministério do Interior, 600.000 mulheres sofrem violência doméstica a cada ano. E entre 12.000 e 14.000 morrem nas mãos de seus parceiros ou familiares − uma a cada 40 minutos. Uma cifra muito semelhante à revelada pela ONU em um relatório de 2010.
A história de Krestina, Angelina e Maria está provocando uma mobilização social. Milhares de pessoas já manifestaram seu apoio às três jovens, de atrizes e youtubers famosos até a defensora de direitos humanos do Kremlin. E vem ocorrendo uma série de piquetes solitários − uma fórmula para driblar a proibição de protestar −, atividades culturais e campanhas nas redes sociais para pedir sua absolvição. Uma petição online já acumula quase 300.000 assinaturas, e foi desencadeada uma campanha como o Me Too dos Estados Unidos. No entanto, em um país muito conservador e patriarcal, no qual a Igreja ortodoxa tem grande influência, também há grupos que negam que esta violência seja um problema. Eles também se manifestaram, mas para exigir uma condenação dura e exemplar para as três jovens.
A Rússia (144 milhões de habitantes) é um dos poucos países do mundo desenvolvido que não tem uma lei específica contra a violência doméstica. E muito menos para combater a violência machista ou os feminicídios. Em 2017, em vez de avançar na proteção das vítimas, o Governo russo descriminalizou alguns casos de agressão doméstica envolvendo infratores primários. Uma reforma legal que veio depois de uma retumbante campanha da Igreja ortodoxa e dos deputados mais conservadores, que há anos se opõem até mesmo ao termo “violência doméstica”, por considerá-lo um produto das “ideias do feminismo radical” usado para “perseguir” os homens.
Agora, segundo a lei russa, uma primeira agressão sem lesões graves contra o companheiro ou os filhos é uma “falta administrativa”, punida com 15 dias de detenção e uma multa equivalente a 1.700 reais. Um segundo delito desse tipo dentro no período de um ano é punido com uma multa equivalente a 2.100 reais e três meses da prisão ou 240 horas de trabalho comunitário.
O resultado da reforma legal foi dramático, afirma Iulia Gorbunova, pesquisadora da ONG Human Rights Watch. Não existe a opção de obter uma ordem de proteção. E os recursos à disposição das vítimas − casas de acolhida, por exemplo − são ínfimos, lamenta. Se antes já era difícil denunciar um caso, com a reforma legal ficou ainda mais difícil, assinala.
Mas Aurelia Dunduc, mãe de Krestina, Angelina e Maria, já tinha dado esse passo. Sentada na área de alimentação de um escuro centro comercial de Moscou, a mulher, de 40 anos, ressalta que foi várias vezes à polícia para denunciar as surras e humilhações às quais era submetida por Mikhail Khachaturian, que depois de seus negócios nos anos noventa com pequenas máfias locais, vivia de renda e de uma pensão. “Não fizeram nada. Engavetaram a denúncia e me disseram para voltar por onde tinha vindo”, diz ela em voz muito baixa. Ao lado, uma garçonete arruma as mesas aos empurrões. E Dunduc salta com cada ruído.
Acompanhada por uma de suas amigas, a mulher, magra e de poucas palavras, diz que seu marido tinha bons contatos na polícia e na procuradoria do distrito. Dunduc, que é moldava, conta que os maus-tratos começaram pouco depois do casamento com Mikhail Khachaturian, de origem armênia. Ela tinha 19 anos e ele, 37.
Dunduc diz que não sabia que suas filhas sofriam abusos. Acredita que as garotas a protegiam e que, por saberem que suas denúncias não serviriam para nada, preferiram se calar. Algumas de suas amigas sabiam o que estava ocorrendo, embora sem muitos detalhes. Victoria Kuropatkina, íntima de Krestina, conta que sabia de parte dos abusos, mas afirma que sua amiga a proibira de ir às autoridades porque temia as consequências. Para Victoria e para ela e suas irmãs.
Em público, Angelina, Krestina e Maria eram três jovens tímidas. Muito estudiosas. A mais nova adora o cinema, conta Dunduc. Angelina gosta de ver séries, tirar selfies com suas amigas e passar o tempo em alguma cafeteria. Krestina, a mais velha, é muito boa em matemática e sonhava em estudar contabilidade, até que suas notas caíram por faltar às aulas.
Muito antes daquele julho de 2018 em que tudo explodiu, as garotas tinham parado de ir à escola. Seu pai quase não as deixava sair de casa. No entanto, criticam os advogados, as autoridades educacionais não investigaram a fundo o caso. Também não houve nenhuma investigação depois da tentativa de suicídio de Krestina, desencadeada por uma das agressões sexuais de seu pai, assinala o advogado Liptser. Na sexta-feira, o Ministério Público iniciou um processo póstumo contra Khachaturian pelos supostos abusos, o que pode provocar uma reviravolta no caso.
Krestina, Angelina e Maria estão em liberdade sob fiança, mas isoladas. Não podem se comunicar entre si nem com as testemunhas do caso ou com a mídia. “Estão bem, na medida do possível”, diz seu advogado. E acrescenta: “Seja no banco dos réus ou isoladas em casa, repetem que pelo menos não sofrem torturas e surras todos os dias”.
Fonte:El País