Milícia e tráfico ameaçam eleição fluminense
Faltava apenas um mês para as eleições municipais de 2008 quando 3.500 militares ocuparam as favelas do Rio de Janeiro, na chamada Operação Guanabara. O objetivo era coibir a influência do tráfico e das milícias sobre a corrida eleitoral e permitir que qualquer candidato fizesse propaganda nas áreas dominadas pelos grupos.
A ação não foi suficiente para garantir a isonomia. Mesmo com a interferência do Exército, candidatos vinculados a organizações criminosas acabaram se elegendo.
Foi o caso de Carminha Jerominho, filha e sobrinha de, respectivamente, Jerônimo Guimarães Filho e Natalino Guimarães, condenados por chefiar a milícia Liga da Justiça, uma das principais do Rio.
“Não se entendeu que houve sucesso, porque a metodologia era de entrar na comunidade, ficar três dias e sair. Pessoas ligadas a esses movimentos conseguiram se eleger”, afirma o juiz Luiz Márcio Pereira, coordenador da fiscalização da propaganda eleitoral.
Doze anos depois, o tráfico e a milícia ainda representam uma grave ameaça às eleições. Segundo juízes, pesquisadores e políticos, o poder e a influência dessas organizações criminosas vêm crescendo, desde então, a cada ano.
Para o sociólogo e professor José Luiz Cláudio Alves, que estuda as milícias há mais de duas décadas, 2020 será o ano da “apoteose” desses grupos.
Ele diz que um discurso de extrema direita, que prega a eliminação de bandidos e o armamento da população, obteve vitória nacional em 2018. Essa narrativa linha-dura, no entendimento do sociólogo, favorece a eleição de personagens ligados às milícias.
“Policiais militares, civis, federais, Forças Armadas, que estão se projetando politicamente, eles próprios ou apoiando pessoas vinculadas a eles, têm nesse momento a apoteose. É o momento de se projetarem, ganharem esse poder, perpetuar essa estrutura da extrema direita”, diz.
Os grupos paramilitares são geralmente formados por quadros das polícias Militar e Civil e dos Bombeiros. No estado do Rio, concentram-se principalmente na zona oeste da capital e na Baixada Fluminense. Historicamente, as milícias obtiveram lucros em cima da extorsão dos moradores de comunidades, por meio da venda de segurança, de gás e do acesso à TV a cabo.
Nos últimos anos, esses grupos estenderam seus tentáculos e hoje cobram por consultas em hospitais públicos e até para enterrar o lixo em aterros construídos por eles.
A venda de imóveis irregulares, como os dois prédios que caíram em abril de 2019 na comunidade da Muzema, na zona oeste da capital, representa outra perna da sustentação financeira.
Para influenciar a corrida eleitoral, as milícias agem tanto sobre eleitores quanto sobre candidatos. Por um lado, tentam conquistar o eleitor ao vender para a comunidade a imagem de benfeitoras. Vangloriam-se, por exemplo, de terem reduzido roubos.
Por outro, lançam mão do controle sobre os moradores. Os milicianos têm acesso aos títulos de eleitor, sabem onde cada um vota e exigem apoio a candidatos específicos.
Ao mesmo tempo, as milícias impedem os demais postulantes de entrar nos territórios que dominam, fazem uso de ameaças e com frequência assassinam os adversários.
“Em 2016, nas últimas eleições municipais, ocorreram 13 assassinatos de candidatos a vereador na Baixada Fluminense. Seis ou sete eram milicianos, então na verdade era um acerto de contas entre eles. Mas matam quando não concordam com um candidato crescendo na área que dominam”, diz José Cláudio Alves.
É comum que o tráfico também só permita a propaganda eleitoral em seus territórios de candidatos apoiados pela própria facção.
Os traficantes exercem influência sobre a população na forma de benefícios ou do controle ostensivo. Especialistas avaliam, contudo, que eles não têm o mesmo poder dos milicianos. “O tráfico não tem a mesma proteção. O traficante não é candidato, é um criminoso, vai ser preso ou morto. Não tem a mesma expressão, o mesmo poder de projeção política”, diz o sociólogo.
O presidente do TRE (Tribunal Regional Eleitoral), Cláudio Brandão de Oliveira, assume que existe o risco de que a milícia e o tráfico gerem impacto na eleição. Ele afirma que o tribunal está realizando um mapeamento das zonas eleitorais para listar as ocorrências dos últimos pleitos.
“Vamos conversar com os juízes eleitorais e com as pessoas dos cartórios. Elas têm a memória do que houve, das dificuldades ali”, diz. “Se você me perguntar: vamos ter muito problema com milícia? Espero que não. Mas há uma possibilidade de que os caminhos da milícia e da Justiça Eleitoral se cruzem.”
Esses caminhos já se cruzam há décadas. Desde os anos 1990 é comum observar, especialmente na Baixada, a eleição de diversos policiais e bombeiros, muitos citados por políticos e pesquisadores como matadores de aluguel.
Com o passar do tempo, apesar das prisões de diversos milicianos, a entrada desses grupos nas casas legislativas e prefeituras não cessou.
Em julho do ano passado, um vereador de Queimados, Davi Brasil Caetano (Avante), foi preso suspeito de liderar uma das milícias mais perigosas do estado. Três meses depois, Marcinho Bombeiro (PSL), ex-presidente da Câmara de Belford Roxo, foi detido suspeito de cometer dois homicídios. Ele também é acusado de chefiar uma milícia.
No ano passado, pelo menos 14 pessoas ligadas à atividade política sofreram atentados no estado. Em dezembro de 2018, a polícia interceptou um plano para matar o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL). Ele foi relator da CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio, em 2008.
As investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em março de 2018, também indicam possível envolvimento da milícia.
Em janeiro deste ano, um carro blindado onde estava a deputada estadual Martha Rocha (PDT) foi alvo de tiros. Ex-chefe da Polícia Civil do Rio, a parlamentar afirmou que já havia recebido ameaças de morte de milicianos.
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