O grande debate inútil
O Flamengo perdeu para o Liverpool por 1 a 0 – encerrando com ligeiro azedume o ano mais doce de sua história recente. A bola mal havia esfriado no deserto de Doha – e torcedores, comentaristas e flatuiteiros já se engalfinhavam em mais uma contenda virtual pós-jogo. De um lado – aqueles que defendiam que o Flamengo fez uma grande partida e jogou de igual para igual. De outro – os campeões da tese de que o Liverpool jogou com freio de mão puxado – dosando seu ritmo.
O leitor atento talvez observe que as duas teses não são necessariamente excludentes. E provavelmente anote inutilidade do debate. Que diferença faz quem jogou melhor?
Salah e Bruno Henrique Flamengo e Liverpool — Foto: REUTERS/Ibraheem Al Omari
Para o torcedor médio – as vitórias do seu time são apenas parte de uma história maior – aquela que confirma sua superioridade eterna sobre todas as outras tribos (ou torcidas). Sob esse prisma, 2019 foi um cruzamento de nirvana com paraíso para o torcedor do Flamengo. Tudo deu certo em todas as direções desde o momento em que o clube trouxe Jorge Jesus até a virada épica contra o River Plate.
Foi o ano da redenção. Do reencontro com a arrogância perdida. De exorcizar o odiado cheirinho. Durante anos, o Flamengo – apesar de ter mais dinheiro que os outros – amargou micos internacionais. A tradicional empáfia rubro-negra soava risível fora do Rio de Janeiro (onde a incompetência do trio rival cuidava de sublinhá-la). O Flamengo era uma espécie de Maurício Mattar que acordava todo dia achando que era o George Clooney – até que o espelho (na forma de um time sul-americano qualquer) trazia a má notícia.
– Olha, Maurício…
O roteiro ameaçou se repetir em 2019 – o time esteve perto de ser eliminado pelo Peñarol… depois pelo Emelec (do qual se safou nos pênaltis). Mas de repente… o elenco milionário encaixou, o time passou a jogar um futebol de almanaque, a encantar e liquidar adversários. O evangelho de Jorge Jesus terraplanou o Brasileirão – e, na Libertadores, fez uma vítima atrás da outra até chegar ao confronto final – em Lima.
Ali o Flamengo enfrentaria outro grande adversário. O título brasileiro já estava no bolso – mas soaria como mera consolação se a taça da Libertadores não viesse. Os rivais já preparavam suas fantasias de nariz. O River Plate – com uma atuação intensa – pôs o Flamengo nas cordas. E, afundado nelas, como um Rocky rasgando a fantasia, o time arrumou forças gigantescas para virar um jogo perdido. Maurício Mattar não havia mais. George Clooney vestia vermelho e preto de novo.
Mas, claro, ainda havia uma cereja a colher no bolo. George Clooney almeja o Oscar – não o prêmio de melhor filme estrangeiro. Ganhar a Libertadores é fantástico – e traz também o direito enfrentar o Mike Tyson no auge. Em outras palavras – a chance de enfrentar o melhor time do mundo para ingressar numa galáxia particular. Basta derrubar o chefão mais sinistro do videogame jogando com uma vida só.
Uma vitória no Mundial – para as torcidas brasileiras – assegura o direito de zoar por incontáveis gerações. Uma coisa é ser o melhor das Américas. Outra é ser melhor do mundo. Para o Flamengo, havia outro ingrediente: a vitória em Lima fez com que o clube ejetasse seu passado recente e passasse subitamente competir com o distante – o inigualável e mítico time de 1981.
Flamengo Liverpool — Foto: EUTERS/Corinna Kern
De repente, não mais que de repente, comparações surgiram. Quem era melhor – Nunes ou Gabigol? Diego Alves ou Raul? A torcida cantava que queria o mundo de novo – e a história parecia boa demais para não ser verdade. Afinal, o rival era o mesmo – o Liverpool. E, como antes, o Flamengo não seria favorito. Seria o representante dos fracos e oprimidos sul-americanos – jogando o ressuscitado e bom e velho futebol brasileiro.
O jogo pareceu alimentar a mitologia. O Golias europeu atacou primeiro – e errou seus golpes. Davi se manteve vivo – com ginga e mobilidade. Folgava, tocava a bola. Parecia ensaiar o lançamento da funda. Golias passava perto. Firmino acertou a trave. Diego Alves fez uma ótima defesa. No último minuto regulamentar, o juiz marcou pênalti e – incrível – voltou atrás. Parecia evidente que a zebra estava à espreita – a um coice de distância. Mas, no futebol, como na vida, Golias nem sempre é míope.
O gigante estava mais inteiro… e, de repente, um golpe errado de Davi gerou um contragolpe…. e a bola estufou a rede rubro-negra. Um sentimento de estranheza tomou conta dos arquibaldos brasileiros no Catar – um sentimento que misturava o orgulho pela atuação digna com uma derrota ao mesmo tempo prometida e inesperada.
Por mais que o Liverpool fosse favorito, por mais que o time inglês fosse melhor, havia entre os torcedores do Flamengo uma esperança surda no destino… que foi se ampliando ao longo do jogo. A vitória incrível sobre o River Plate alimentou uma certa sensação de inevitabilidade – que crescia a cada chance inglesa perdida ou jogada ousada carioca. E então, de repente, a água fria. Uma dose cavalar de realidade firmina – que não chegou a transformar carruagem em abóbora – longe disso. Mas deixou o amargo gostinho do quase. E a dor do quase, muitas vezes, é a mais dura.
De repente, o destino acalentado não se cumpria, a trilha sonora do inevitável, desafinava. Subitamente… todos os adversários embarcavam entusiasmados em paródias da música de 1981 – o cheirinho estava de volta em outro patamar. Assim é o mundo das redes sociais – da ironia imediata, dos memes em todas as direções. A vitória maiúscula, impenetrável, não tinha vindo (ou talvez tenha vindo antes – em Lima). O mundo não tinha sido pintado em vermelho e preto. Faltou a cereja do bolo mais incrível – e a sensação de vazio desceu. Mas 2019 não apenas enterrou o Flamengo invisível internacionalmente ou a Inglaterra da Libertadores. Ele resgastou o tal George Clooney perdido – o arroto de superioridade – que há eras soava como o garbo de um milionário arruinado. Não mais. Mesmo sem o final feliz intergalático, o filme de 2019 permanecerá gravado nas úmidas pupilas rubro-negras por muitos anos.
O grande debate inútil sobre a final tende a desaparecer no continuum da narrativa. A história costuma se importar pouco com a atuação dos vencidos. Em breve a roda do futebol volta a girar – a zoação nunca termina – e embarcaremos de novo na jornada de todas as tribos.