Juiz que participa do inquérito tende a condenar réu, diz estudo
Mesmo que não queira, um juiz é frequentemente presa fácil de processos inconscientes que podem torná-lo um árbitro injusto de decisões cruciais para a vida das pessoas. Só por isso já se imporia a mudança no atual modelo, com a criação da figura do magistrado responsável pela instrução processual, defende Carlos Alberto Garcete, estudioso do tema.
Juiz criminal há 20 anos, Garcete atua no Tribunal do Júri em Campo Grande (MS). Doutor em Direito Processual Penal pela PUC-SP e pós-doutorando pela Universidade de Lisboa, publicou tese em 2016 sobre o tema.
A ideia, em linhas gerais, é dividir entre dois juízes a instrução criminal e o julgamento de processos, hoje concentrados em uma mesma pessoa. O modelo é usado em países como Itália, França, Chile, Paraguai, Colômbia e México, entre outros.
A proposta de criar o chamado juiz de garantias não é nova, mas voltou a ganhar força no Congresso após a divulgação dos diálogos mostrando proximidade entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol. Ela já foi aprovada no Senado, mas ainda está pendente na Câmara.
Advogados de réus como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reclamaram de falta de isenção de Moro ao julgá-los. A figura do juiz de garantias pode ser incluída, ironicamente, no pacote de medidas anticorrupção proposto pelo agora ministro da Justiça.
Para Garcete, a divulgação dos diálogos dá impulso a essa discussão, mas o debate independe da atual polêmica.
“O ser humano tem uma tendência natural de querer reconfirmar suas decisões. Com o juiz é a mesma coisa. Se eu autorizo medidas de busca e apreensão, isso acaba influenciando meu lado psicológico e reforça minha tendência a condenar. Se eu absolver, é como se estivesse reconhecendo que cometi uma falha na fase anterior”, afirma.
Em sua tese, Garcete toma emprestada da psicologia a chamada Teoria da Dissonância Cognitiva, pela qual o indivíduo tem a tendência de minimizar elementos que fragilizem suas convicções e busca outros que as confirmem.
Essa teoria embasou um experimento promovido pelo jurista e filósofo alemão Bernd Schunemann, que Garcete cita em sua tese.
Em 2000, Schunemann escreveu o artigo “O Juiz como um Terceiro Manipulado no Processo Penal”, baseado em pesquisa feita com 58 juízes e promotores na Alemanha.
No experimento, os juízes foram divididos em dois grupos, com base na análise de uma situação hipotética. Os que, numa situação simulada, tomaram decisões acerca da instrução processual, optaram por condenar os réus de forma unânime. O outro grupo, que não teve contato com a fase de instrução, dividiu-se entre condenações e absolvições de maneira equilibrada.
“É possível depreender que o juiz que tenha participado ativamente da investigação preliminar, notadamente quando se coloca na equivocada função de coprodutor de provas, estará viciado para as fases seguintes da persecução”, afirma Garcete.
Se adotado, o juiz de garantias atuaria em todas as fases do processo anteriores ao oferecimento da denúncia por parte do Ministério Público, incluindo medidas cautelares, ações de busca e apreensão e tomada de depoimentos.
À reportagem Garcete declarou que não vê o risco de passarem a existir duas categorias de juízes, alguns mais importantes que outros. “Essas divisões na magistratura são normais e já existem. Hoje, há juiz de homicídio, juiz de tribunal do júri etc. Cada um tem sua importância”, afirma.
Seriam criadas, por essa proposta, “varas de garantia”, como hoje existem as especializadas em determinados temas como fazenda e infância e juventude, por exemplo.
Também não seria necessário, afirma ele, haver contratação de novos juízes para preencher essas vagas adicionais. “Bastaria haver uma readequação. O juiz terá menos carga de trabalho em cada processo, então compensará isso cuidando de mais processos”, declara.
Em cidades pequenas, juízes poderiam ser emprestados de localidades maiores, atuando na instrução de processos por videoconferência, caso fosse necessário.
A ideia, previsivelmente, é controversa. A Ajufe (Associação dos Juízes Federais) é contra a mudança por questões práticas e jurídicas, embora esteja aberta a discutir o tema, segundo seu presidente, Fernando Mendes.
“Praticamente 40% das comarcas brasileiras só têm um juiz, e isso poderia criar um problema operacional, de não haver uma estrutura adequada para a figura do juiz de garantias”, afirma Mendes.Segundo ele, o sistema brasileiro sempre funcionou bem com base na estrutura atual, em que o juiz cuida desde a fase de investigação. “Isso não o torna suspeito para o julgamento da causa”, declara.Mendes diz, contudo, que o tema tem evoluído. O problema operacional poderia ser resolvido com ajuda da tecnologia, com a criação de juízes de garantia regionais, atendendo a diversas cidades à distância.”A mudança poderia ocorrer de forma gradual”, afirma o magistrado.
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