Até o consumidor mais simples recusa cerveja de milho, diz produtor
Setor que parece alheio à crise econômica que ronda o país, a cerveja artesanal continua em uma curva crescente. Recentemente, o Brasil atingiu a marca de 1.000 cervejarias, distribuídas em 500 municípios.
“Pegando a população de cada um, são cerca de 90 milhões de habitantes. Então estamos acessíveis a uma boa parcela da população”, comemora Carlo Lapolli, presidente da Abracerva (Associação Brasileira de Cerveja Artesanal).
Para Lapolli, que acaba de voltar do primeiro Festival de Cerveja Artesanal de Mato Grosso, o papel das cervejarias é local. E o grande vilão ainda são os impostos estaduais. PERGUNTA – A cerveja brasileira é boa?
CARLO LAPOLLI – Acho que estamos em um patamar de qualidade excepcional, comparável com qualquer líder de mercado da cerveja artesanal, de países da Europa ou do próprio Estados Unidos.
Temos excelentes cervejas de padrão mundial. Claro, temos mil cervejarias, algumas não são tão boas, estão começando. Mas temos várias consolidadas, com reconhecimento internacional.
P. – Sempre se fala das quatro escolas cervejeiras (alemã, belga, inglesa e americana). Tirando essas quatro potências, em que lugar vê o Brasil?
CL – Já estamos na elite. Se olhar para o lado, Argentina, Chile ou Uruguai, estamos muito à frente. O problema de não ser reconhecido em outros países é uma questão de política comercial. Não somos muito abertos à exportação.
Mas, em competições internacionais ou entre as pessoas antenadas, que julgam os concursos, todos reconhecem a cerveja brasileira.
P. – Acha importante ter uma escola brasileira?
CL – Isso é bobagem. O importante é ter cerveja boa. O que temos que aproveitar, e esse é o grande trunfo do Brasil, são os biomas daqui, as madeiras brasileiras, cumaru, bálsamo, amburana. Nos dão possibilidades muito maiores do que o carvalho americano ou francês.
Começamos em Santa Catarina o movimento da catharina sour, uma cerveja ácida que usa fruta, e temos grandes possibilidades nesse quesito.
Não faz sentido tentar exportar uma cerveja de trigo para a Alemanha. Mas, se fizer uma IPA com semente de cumaru, pode ser algo para vender nossa brasilidade.
P. – A catharina sour já foi aprovada como estilo oficial?
CL – O guia BJCP (Beer Judge Certification Program) passa por uma revisão a cada cinco ou sete anos. Quando tem um estilo novo, ele entra como provisório, foi o que aconteceu.
No próximo, pode entrar como definitivo. Já tem catharina sour sendo feita no Canadá, nos Estados Unidos. Isso é bom para o cenário cervejeiro. Mostra nossa importância.
P. – Alcançamos o número da milésima cervejaria neste ano. O que isso representa?
CL – O número é uma coisa cabalística. Talvez seja um marco importante para mostrar que a gente cresceu muito rápido.
Temos mais ou menos 15 anos de mercado [de cervejas artesanais]. Antes o público tinha de procurar lugares especiais. Hoje está virando quase uma obrigação um bom bar ou restaurante ter uma boa carta de cervejas.
Essas 1.000 cervejarias estão em 500 municípios. Estamos acessíveis a uma boa parcela da população.Temos duas barreiras importantes para democratizar a cerveja: a mais importante é a renda, vender um bem supérfluo para alguém que ganha pouco é uma dificuldade; outra questão é a tributação, a artesanal é competitiva dento da região local em que está inserida, mas, por uma questão fiscal brasileira, é muito complexo vender em outro estado, encarece o produto.
P. – Apesar de ter cervejas de tantos lugares, não vemos essa variação nos bares.
CL – O papel de uma cerveja artesanal é ser uma cerveja local, em qualquer lugar. Se for aos Estados Unidos, é assim, se for à Alemanha, é até pior, eles não usam o termo cerveja artesanal, para eles, não faz sentido, porque eles já têm uma cultura muito forte de cerveja local.
Nos Estados Unidos, a gente vê isso, cervejarias pequenas, locais. Você acaba tomando um produto fresco e acessível, sem impacto de transporte ou embalagem.Por exemplo, dificilmente vai chegar um chope de qualidade de uma grande cervejaria a Nova Mutum, interior de Mato Grosso. Mas lá tem uma cervejaria local que cumpre esse papel.
P. – Existe algum trabalho da Abracerva para tentar minimizar a carga tributária da cerveja?
CL – Esse é um trabalho quase diário da Abracerva. Precisamos ter uma regulação mais inteligente.Estamos com mais de 80% das cervejarias no Simples, o que diminui bastante a carga federal. O grande vilão são os impostos estaduais. Cada estado tem uma legislação.
Uma cervejaria artesanal em Santa Catarina paga em torno de 25% a 35% do faturamento em impostos. Uma grande paga 15%.
Alguma coisa está errada, não? Mas o lobby deles é grande. O pequeno não tem essa força. O papel da Abracerva é de aglutinar os pequenos. A gente não quer um incentivo fiscal, mas um equilíbrio fiscal com uma grande. Queria pagar o mesmo que eles pagam.
P. – Algum estado está na frente na questão tributária?
CL – Santa Catarina foi o primeiro a dar um incentivo para as artesanais, de até 200 mil litros por mês. Isso foi em 2009.
Temos no Rio de Janeiro, em Goiás, em Pernambuco, no Espírito Santo, no Paraná e no Rio Grande do Sul. Mas os mais significativos são em Santa Catarina e em Goiás. Mas Goiás não parece ser um grande polo cervejeiro. Só em Goiânia eles têm umas 30 cervejarias. E muitas de Brasília fabricam em Goiás, pelas facilidades que não existem no Distrito Federal.
Quanto a cerveja artesanal no Brasil representa do consumo total?”,Cerca de 2%, 2,5% do participação de mercado.
P. – Há espaço para crescimento?
CL – Não tenho dúvida. O perfil do consumidor tem mudado. Tenho um filho de 21 anos, quando ele vai beber, pode escolher entre 30, 40 rótulos. Na minha geração, beber cerveja era quase como ter um time de futebol. Você escolhia uma marca e não mudava, mudava de bar, mas não de cerveja, tinha o brahmeiro. Isso mudou e implica uma fragmentação das marcas. As pessoas estão buscando sabor.
P. – Mas enxerga um teto?
CL – Os Estados Unidos têm cerca de 7.000 fábricas. Acho que chegar aqui a 3.000 é possível, com uma conjunção positiva de fatores. Em dez anos acho factível alcançar 7%, 8% do mercado. Os americanos têm 18% a 20% do mercado.
P. – E como competir quando uma Bohemia (da Ambev) faz estilos chamados artesanais, como uma vienna, uma pale ale, com preço competitivo?
CL – Volto à questão local. Temos cervejarias que praticam preços semelhantes às do mainstream, pelo menos entre as premium. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul isso já é comum. Você encontra na gôndola uma pilsen na lata por R$ 2,99, uma vienna da Bierland por R$ 3,99.
Eles [grandes cervejarias] vieram para o nosso mercado, mas as pequenas estão buscando eficiência e modernização para morder a fatia deles.
Temos muito mais chance de morder o mercado deles do que eles o nosso. Acho muito possível crescer no mercado premium, de cervejas como Heineken e Stella Artois.
P. – O governo atual é mais atuante em relação às artesanais (acabou de ser assinada uma instrução normativa que libera o uso de derivados como mel e lactose)?
CL – Esse assunto estava sendo discutido desde 2013. No ano passado mesmo teve uma reunião na Casa Civil para tentar aprovar esse decreto, ainda com o Michel Temer.
Depois trocou de ministro, acabou ficando para o governo Bolsonaro e ele atendeu esse pleito do setor. E isso não vai mudar as regras de proporção de cereais.
P. – Essa foi a primeira discussão que surgiu na esteira da assinatura, o “avanço do milho”.
CL – É que ele tirou do decreto, mas está na instrução normativa. Na instrução tem todos os dados, o que pode, o que não pode. Faço até uma provocação: se quiser fazer cerveja com 10% de malte [a lei atual diz que a carga de cereais maltados deve ser de no mínimo 55%], ótimo. A cerveja deles vai ficar pior, é melhor que o concorrente faça uma cerveja pior. Hoje em dia até o consumidor mais simples recusa cerveja de milho.
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