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O Brasil pretende levar à 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30) a agricultura regenerativa tropical como vitrine global contra a crise climática. A avaliação é de Roberto Rodrigues, ex-ministro e atual enviado especial da agricultura para a conferência. Segundo ele, a experiência brasileira mostra que é possível ampliar a produção de alimentos e, ao mesmo tempo, regenerar solos, recuperar pastagens e reduzir emissões.

“O Cerrado, antes considerado imprestável, transformou-se no Maracanã da Copa do Mundo da alimentação graças à ciência e à tecnologia”, afirmou Rodrigues durante a Rio Climate Action Week. Ele lembrou que, até a década de 1980, a agricultura mundial era dominada por países de clima temperado, mas que a criação da Embrapa, em 1973, mudou o cenário, ao desenvolver tecnologias adaptadas aos trópicos.

Para a COP30, está em elaboração um documento técnico que reunirá resultados da agricultura regenerativa brasileira em grãos, carnes, frutas e outras culturas. Rodrigues destacou que, nos últimos 35 anos, a área plantada de grãos no país cresceu 116%, enquanto a produção saltou 479%. “Produzimos muito mais por hectare, usando menos terra. Esse é o tema central da sustentabilidade”, disse.

O ex-ministro defende que a experiência nacional pode ser replicada em outras regiões tropicais, como América Latina, África Subsaariana e partes da Ásia. “Somos protagonistas desse processo. Precisamos mostrar ao mundo que é possível expandir a produção com ciência e tecnologia, mas também reconhecer nossos pecados: desmatamento ilegal, invasão de terras, garimpo clandestino e incêndios criminosos, que não aceitamos e queremos resolver.”

Rodrigues também ressaltou a necessidade de financiamento internacional para ampliar práticas regenerativas, como a recuperação de pastagens degradadas e o uso de inteligência artificial no campo. “Queremos convidar o mundo desenvolvido a financiar esse processo no cinturão tropical. O objetivo é enfrentar os quatro cavaleiros do apocalipse moderno: segurança alimentar, transição energética, mudanças climáticas e desigualdade social. O Brasil tem a vitrine e a alavanca para mostrar isso.”

Experiências já em curso no Brasil mostram como a agricultura regenerativa pode reduzir custos, aumentar a resiliência climática e abrir espaço para políticas públicas mais eficazes no campo. Produtores de grãos em Goiás têm conseguido resultados expressivos ao adotar práticas, como diversificação da cobertura do solo, rotação de culturas, planejamento do uso de maquinário e substituição parcial de insumos químicos.

“Esses agricultores usam remineralizadores regionais, adubação orgânica da agroindústria e biofábricas próprias dentro da fazenda para produzir bioinsumos biológicos que substituem fungicidas e inseticidas”, explicou o agricultor Eduardo Martins, presidente do Grupo Associado de Agricultura Sustentável (GAAS).

De acordo com Martins, os ganhos são consistentes. “Eles conseguiram reduzir de 50% a 70% o uso de pesticidas, cortar pela metade os fertilizantes químicos e baixar os custos de produção em 30% a 40%, mantendo os níveis produtivos — inclusive, em períodos de seca que duram um terço do ciclo de produção. Isso representa o dobro ou até o triplo da resiliência em comparação ao sistema convencional”, afirmou.

O agricultor ressaltou que não há “pacote pronto” para a agricultura regenerativa. “Pacote é coisa da indústria. A molécula funciona em qualquer lugar do mundo, mas gera externalidades enormes. O que estamos construindo é uma taxonomia de agricultura tropical regenerativa, adequada à nossa realidade, sem impor protocolos que não cabem no Brasil.”

Sistemas alimentares

O sistema agroalimentar global vive um esgotamento e já não responde aos desafios sociais, ambientais e de saúde pública do século 21. Para o professor senior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) Ricardo Abramovay, a superação desse impasse exige uma transformação profunda, que coloque a biodiversidade no centro da produção e adote a agricultura regenerativa como novo paradigma.

“É uma vergonha que haja 800 milhões de pessoas passando fome, mas também é um imenso sucesso, porque nunca se produziu tanta comida. Só que esse sucesso se esgotou”, disse. Para ele, a base do sistema agrícola contemporâneo se apoia em uma “tríplice separação”: da agricultura em relação à biodiversidade, da produção animal em relação às fontes de alimentação e dos alimentos em relação à saúde.

Segundo Abramovay, essa lógica gerou três formas de monotonia: dos produtos agrícolas, das técnicas produtivas e da dieta alimentar. “A humanidade conhece sete mil produtos agrícolas, mas 75% das calorias vegetais vêm de apenas seis: soja, milho, trigo, batata, cana-de-açúcar e arroz. E as técnicas que usamos até hoje tratam a vida como inimiga da produção”, afirmou.

Hoje, no sistema da soja, 60% do capital é apropriado por grandes corporações e multinacionais, conforme destacou Eduardo Martins. “Mesmo nesse setor, há um espaço extraordinário para que mais recursos fiquem nos contextos produtivos”, disse ao defender uma maior circulação de recursos dentro das próprias regiões agrícolas.

Segundo ele, isso passa por cooperação entre agricultores de diferentes portes. “Não adianta pensar num lugar voltado só à exportação, enquanto há fome na região. Grandes, médios e pequenos podem compartilhar conhecimento e estratégias. Se organizados, os territórios ganham capacidade de estruturar crédito, logística e verificação de terceira parte de forma muito mais racional”, enfatizou.

Taxonomia

O ambiente tropical é uma vantagem estratégica e competitiva. Solos profundos favorecem a reciclagem, a ativação biológica ocorre em ritmo acelerado e a capacidade de produzir e incorporar matéria orgânica é imensa. Isso coloca o Brasil em uma posição única para liderar esse avanço.

O presidente do GAAS afirmou que o grupo já está desenvolvendo uma proposta de taxonomia para agricultura regenerativa, atualmente em discussão com instituições como a Fundação Dom Cabral. Segundo ele, a iniciativa não tem como objetivo criar apenas um sistema de certificação, mas estabelecer uma referência técnica e conceitual capaz de orientar políticas públicas, promover práticas agrícolas mais responsáveis e adaptar a produção às condições regionais.

“Queremos consolidar uma visão que envolva agricultores, cadeias produtivas e territórios, mostrando que é possível produzir de forma sustentável sem comprometer produtividade ou lucratividade”, destacou.

Para Martins, a abordagem territorial é essencial para enfrentar os desafios do desmatamento e da implementação do Código Florestal. “Se não lidarmos com a lógica do fato consumado, não vamos conseguir reverter o desmatamento. É preciso adotar soluções regionais que integrem aspectos ambientais e fundiários, porque separar um do outro simplesmente não funciona”, afirmou.

Ele defendeu ainda uma mudança de perspectiva na condução das políticas agrícolas. “Não podemos depender de uma norma que venha apenas para regularizar tudo de forma burocrática. É necessário mostrar na prática os benefícios desse modelo e conquistar adesão dos produtores. A agricultura regenerativa não é apenas técnica, é uma construção social capaz de restaurar a funcionalidade dos territórios e gerar resultados sustentáveis para toda a comunidade.”

Para o pesquisador da USP, o Brasil tem condições de liderar um novo paradigma, baseado na abundância de qualidade e não na produção desenfreada. “Nós precisamos de abundância, mas abundância de vida, de qualidade. O Brasil e o mundo tropical são exatamente onde a ciência e a tecnologia podem contribuir para que tenhamos uma economia da abundância e não uma economia do excesso”, avaliou Abramovay.

Ele alertou, no entanto, para os obstáculos internos, sobretudo em relação ao desmatamento. “O mais impressionante no caso brasileiro é que as pessoas continuam tratando o desmatamento como um direito, tão legítimo quanto o direito de possuir escravos na época da escravidão. O Brasil ainda é o único país do mundo em que metade das emissões vem de desmatamento, o que é absurdo”, criticou.

Na avaliação de Abramovay, a agricultura regenerativa pode ser um caminho para superar esses dilemas. “Precisamos mudar o conceito de segurança alimentar, que até hoje foi quantitativo. Esse mundo está acabando. É preciso oferecer alimentos que respeitem a vida, que não comprometam a saúde das pessoas nem os ecossistemas”, reforçou.

Ele acrescentou que a transição já está em curso, impulsionada pelo aumento dos custos da agricultura convencional. “Quanto mais se aplica agrotóxico, mais se precisa aplicar agrotóxico. Isso pesa no bolso dos produtores, que vão buscando alternativas. O ambiente tropical oferece muitas oportunidades, e algumas fazendas já começam a trilhar esse caminho. Não é ainda em escala massiva, mas é o futuro”, disse Abramovay.

fonte: correio Braziliense