O segundo mandato de Trump e o acerto de contas com a diplomacia lulopetista
O retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos permite antecipar algumas possíveis consequências significativas para o Brasil, não apenas no campo das relações bilaterais, mas com reflexos para a política externa nacional e, em um espectro mais difuso, para o Estado brasileiro como um todo. Essas implicações poderão ser amplificadas caso o Partido Republicano mantenha e conquiste a projetada maioria na Câmara dos Representantes, já que também conquistou a maioria no Senado.
Herdeiros, de forma geral, da tradição Realista das Relações Internacionais e suas derivações — segundo a qual a anarquia e a competição são as principais características do cenário internacional, razões pelas quais os Estados pautam suas ações pela busca incessante de segurança e poder, sobretudo político, econômico, militar e comercial — , os Republicanos tendem a valorizar duas características marcantes em temas de relações exteriores, as quais, longe de serem contraditórias, se completam e se reforçam mutuamente: ao lado de um acentuado pragmatismo direcionado para a consecução dos objetivos propostos coexiste uma arraigada aversão a nações e governantes vistos como contrários aos princípios, valores, visão de mundo e, por que não?, interesses norte-americanos.
Nesse contexto, tudo indica desenhar-se uma antagonização geoestratégica, pelo governo Trump, da política externa conduzida por Lula e Celso Amorim, a qual incidirá tanto sobre as relações bilaterais quanto em outros temas sensíveis da diplomacia brasileira.
No que tange ao relacionamento bilateral, eventual animosidade entre Brasília e Washington poderá, por exemplo, ensejar desde redução ou suspensão da cooperação militar — da qual as Forças Armadas brasileiras se beneficiam, inclusive adquirindo produtos de defesa em condições relativamente vantajosas, por meio do programa Foreign Military Sales — a sanções contra autoridades brasileiras promotoras de atos manifestamente ilegais (consoante a própria legislação do Brasil, como a censura, a violação da imunidade parlamentar e a erosão do devido processo legal pelo STF, sem prejuízo de outros temas), passando por cancelamentos e denegações de vistos, dentre outros domínios.
A perseguição ao deputado federal Marcel van Hattem (NOVO-RS) por um ministro do STF, em inequívoca violação da previsão constitucional da imunidade parlamentar, com o alegado apoio do governo de Joe Biden (de acordo com artigo publicado nesta Gazeta por Michael Shellenberger, em 17/10), oferece pistas sobre os possíveis rumos de uma hipotética investida antiautoritária e anticensura por parte do governo Trump, com reflexos tanto para autoridades brasileiras quanto para órgãos governamentais daquele país.
Ao contrário do que ocorre no Brasil, o Congresso dos Estados Unidos exerce considerável influência sobre a formulação e a execução da política externa daquele país, razão pela qual o controle republicano do Congresso poderá conduzir à formação de uma frente unificada Executivo-Legislativo capaz de antagonizar os objetivos geoestratégicos aparentes da política externa de Lula e Amorim — por mais opacos e insípidos que sejam —, bem como contra-arrestar a sanha censora e autoritária do duopólio de poder representado por Lula e pelo STF.
Nesse particular, convém destacar, aliás, que o repúdio do Partido Republicano ao autoritarismo do Estado e do governo brasileiros não precisará aguardar a projetada maioria conservadora em ambas as Casas do Congresso: em setembro deste ano, os deputados republicanos María Elvira Salazar (Flórida) e Darrell Issa (Califórnia) apresentaram projeto de lei intitulado “Nenhuma Censura em Nosso País” (“No Censorship On Our Shores”), que prevê a denegação de visto a agentes estrangeiros que violem os direitos de cidadãos norte-americanos estabelecidos pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos (que trata da liberdade de expressão). Eventual transformação do projeto em lei poderá pavimentar o caminho para o cancelamento dos vistos, pelo Departamento de Estado, de autoridades estrangeiras que incorram nos tipos previstos no diploma legal.
Venezuela e Israel
Para além das consequências bilaterais, uma posição intransigente do governo Trump em relação à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela poderá concorrer para isolar ainda mais o Brasil na América do Sul, ambiente geoestratégico imediato no qual a capacidade brasileira de exercer influência foi reduzida a níveis inauditos pelas parvoíces da dupla Lula-Amorim. Esse isolamento poderá perfazer um fiasco diplomático histórico se associado à provável aproximação de Trump do libertário argentino Javier Milei.
Isolada em seu entorno geoestratégico, a Brasília restaria a dimensão extracontinental da política externa, na qual o governo Trump também poderá infligir prejuízos consideráveis à desorientada diplomacia lulopetista, sobretudo no que concerne ao alinhamento do Brasil aos interesses do Irã e seus proxies terroristas (como o Hezbollah e o Hamas) no Líbano, na Síria e no Iêmen (houthis).
O futuro governo norte-americano dificilmente poderia prejudicar ainda mais as relações do Brasil com Israel, já que Lula, Amorim e o PT as arruinaram de tal modo que o ano de 2024 assinalou o ponto mais baixo do relacionamento bilateral desde a criação do Estado judeu, em 1948.
É oportuno recordar que, em seu último número circense mesclando sabotagem dos interesses nacionais com antissemitismo, e ao arrepio da legislação, da impessoalidade na administração pública e dos princípios constitucionais que regem as relações exteriores do Brasil, Lula determinou, em outubro, a suspensão de licitação internacional relativa a um projeto estratégico do Exército Brasileiro e vencida por empresa israelense, em vigorosa manifestação de compromisso do petismo com o aprofundamento da obsolescência dos meios militares brasileiros.
China
Em menor medida, também as relações entre o Brasil e a China deverão ser impactadas pelas linhas de ação anunciadas por Donald Trump, não diretamente pelas majorações tarifárias que o presidente eleito pretende impor a produtos chineses, e sim por causa da intensificação da desaceleração econômica chinesa que tais medidas (e outras) deverão ensejar.
A redução do crescimento econômico chinês decerto incidirá sobre as exportações brasileiras de commodities agrícolas, metálicas e energéticas; por outro lado, espera-se que tanto Brasília quanto Pequim instrumentalizem o antagonismo de Donald Trump para aprofundar seus laços políticos, o que poderá indiretamente acarretar, no longo prazo e dentre outras consequências, incremento da dependência, em relação à China, dos setores brasileiros exportadores de commodities.
Eleições 2026
No plano multilateral, a presidência norte-americana do G20, em 2026, poderá perfazer importante foco de tensão entre Brasília e Washington, sobretudo se a Reunião de Chefes de Estado do Grupo ocorrer antes da conclusão do ciclo eleitoral brasileiro, previsto para 25 de outubro daquele ano. Caso seja realizada antes de outubro de 2026, a reunião constituirá oportunidade para que Lula volte a expor sua visão de mundo liberticida, autoritária e policialesca, ademais de utilizar a cimeira para fins eleitoreiros.
Por se tratar de ano eleitoral também nos Estados Unidos (em novembro de 2026 serão realizadas as midterms, eleições legislativas nas quais estarão em disputa todos os 435 assentos da Câmara dos Representantes e 33 dos 100 assentos do Senado), espera-se que o calendário do G20 sob a presidência dos EUA reflita — se bem que em medida modesta, dada a importância reduzida que Washington tradicionalmente atribui a foros dessa natureza — as prioridades estratégicas do governo Trump. De todo modo, a reunião de chefes de Estado deverá ser a única ocasião em que Lula comparecerá a um evento cujo anfitrião será Donald Trump.
Rússia, Ucrânia e BRICS
A anunciada mudança de posicionamento do governo Trump em relação à Rússia, em termos gerais, e à guerra na Ucrânia, em termos específicos, poderá ser dos poucos temas estratégicos pivotais nos quais o antagonismo entre Brasília e Washington não se manifestará com intensidade particularmente elevada, já que, para além dos comentários simplórios de Lula e da ânsia infantil de Celso Amorim por um protagonismo irredento sobre o assunto, o atual governo brasileiro felizmente ainda não havia conseguido arruinar as relações com quaisquer dos beligerantes.
No entanto, as relações com Moscou foram abaladas há cerca de duas semanas, por ocasião da Cúpula do BRICS, em Kazan, quando Vladimir Putin impôs uma fragorosa humilhação a Lula, ao formalizar convite para que a Venezuela de Nicolás Maduro adira ao bloco e, em seguida, manifestar-se publicamente contrário ao veto do Brasil à adesão de Caracas.
O desprestígio brasileiro no BRICS, aliás, poderá ter como efeito acidental positivo evitar foco adicional de antagonismo com o governo Trump, já que em 2025 o Brasil assumirá a presidência do bloco. Caso o País dispusesse de capital diplomático para fazer avançar iniciativas antiocidentais durante sua presidência, essa liderança poderia ensejar medidas retaliatórias por parte dos EUA; Contudo, relegada a um papel secundário no BRICS, a dupla Lula-Amorim poderá se ver forçada a amainar seu vasto repertório de trapalhadas.
Existe, por outro lado, a possibilidade de que o antagonismo sobre o qual se discorre neste artigo tenha repercussão contida, principalmente se a conformação da agenda estratégica do governo Trump optar por relegar a América do Sul a um papel residual na política externa norte-americana.
Este parece ser um aspecto ao qual a oposição parlamentar brasileira necessitará dedicar o foco de seus esforços, sobretudo com vistas a trazer a atenção dos EUA e dos quinhões democráticos da comunidade internacional para a deterioração do Estado de Direito no Brasil.
Nesse cenário, será indispensável uma estratégia da oposição parlamentar e das demais lideranças conservadoras brasileiras, inclusive industriais, visando a obter o apoio da comunidade internacional, no âmbito da qual os Estados Unidos são o principal ator, para impedir o aprofundamento do autoritarismo e de recorrentes medidas de exceção no País.
* Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa
Fonte: www.gazetadopovo.com.br