Projetos de enfrentamento à violência sexual contra crianças são desenvolvidos na Justiça Itinerante
Ao assistir uma palestra com abordagem lúdica, porém sobre temas difíceis – o abuso e a violência sexual – as crianças de uma escola de Extrema, distrito de Porto Velho, foram estimuladas ao final, a escrever em papéis coloridos as dúvidas que tinham sobre as questões mencionadas pela assistente social e pela psicóloga do Judiciário. O resultado da atividade é impactante, pois as perguntas feitas pelos alunos revelam uma realidade enfrentada por muitos no ambiente doméstico: se ela ou ele for próximo ou parente ele pode nos tocar? Criança pode namorar com tio? Por que algumas famílias obrigam seus filhos a aceitar toques, com a desculpa de que “se você recusar será mal educado”?
A palestra faz parte do projeto Miracema, de prevenção e enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, desenvolvido durante a Justiça Rápida Itinerante. A equipe psicossocial da Vara de Proteção à Infância e Juventude aproveita a ação do Judiciário nos distritos para fazer um trabalho com os estudantes. Os bonequinhos Pepo e Fifi são usados para explicar às crianças, a partir de 4 anos, conceitos básicos sobre o corpo, sentimentos e emoções. De forma simples e descomplicada, ensinamos a diferenciar toques de amor de toques abusivos, apontando caminhos para o diálogo, proteção e ajuda. Os personagens apoiam atividades de prevenção da violência sexual infantil, promovendo a vulnerabilidade das crianças.
Com os professores foi realizada uma roda de conversa sobre a importância das denúncias de suspeitas de violências. Além disso, a equipe trabalha com profissionais de saúde e pais, sobre a importância da notificação, especialmente o esclarecimento de que as denúncias podem ser feitas de forma anônima por diversos contatos da rede de proteção.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) determina como sendo infração administrativa, em seu artigo 245 “deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeitas ou notificações de maus-tratos contra criança ou adolescente.” A autoridade competente pode ser o Conselho Tutelar ou o Ministério Público, por exemplo.
Algumas situações resolvidas tiveram exceções durante a própria Justiça Rápida Itinerante. “A cada vez que vou à operação, sentimos o acesso prático à Justiça, pois percebemos que de facto contribuímos com a proteção”, comentou a assistente social Sayonara Souza sobre o trabalho realizado nos distritos da chamada Ponta do Abunã. “Nos deparamos com crianças de 9 anos iniciando suas atividades sexuais. Crianças de 11 anos grávidas, tudo naturalizado”, acrescentou.
As providências contra a violação de direitos podem ser tomadas como notificações, afastamento de agressores, e, principalmente, a conscientização.
“Durante o trabalho, promovemos também o acolhimento, a escuta e a orientação durante a operação itinerante, e as demandas espontâneas que surgiram durante os escritórios”, esclareceu a assistente social Viviane Bertola.
Miracema
O projeto Miracema busca mobilizar as comunidades ribeirinhas e distritais para questões relacionadas à prevenção, defesa e responsabilização de violação de direitos contra crianças e adolescentes, principalmente à violência sexual. O Projeto prevê ações com profissionais que compõem a equipe de saúde da família, educação, segurança pública, líderes comunitários e religiosos, responsáveis legais das crianças e adolescentes e do público infanto-juvenil em rodas de conversa em escolas locais.
Entrega protegida
Outro tema abordado foi a Entrega Voluntária de Filhos para Adoção, projeto desenvolvido pelo NUPS atendendo resolução nº 190 do CNJ. Por meio desse mecanismo pretente-se evitar a prática de abandono ilegal de crianças, proporcionando uma solução responsável e legal para os pais que não desejam permanecer com a guarda dos filhos.
A equipe visitou escolas e unidades básicas de saúde – UBS nos distritos percorridos. Nas UBS foi feita uma roda de conversa com os profissionais de saúde sobre a importância e necessidade da notificação de violência contra crianças e adolescentes e sobre a Entrega Protegida, bem como distribuição de material informativo sobre os serviços oferecidos em Porto Velho/RO, contendo orientações e contatos relevantes sobre onde buscar ajuda em situações de desproteção de crianças e adolescentes.
Relatório
Em cinco dias a equipe psicossocial totalizou cerca de 400 atendimentos nos distritos de Jaci-Paraná, Abunã, Nova Califórnia, Extrema e Vista Alegre do Abunã, percorrendo aproximadamente 656 km.
No relatório final produzido por profissionais destaca-se que em praticamente todos os distritos há relatos de violência sexual contra crianças e adolescentes e o medo de represálias em relação à denúncia.
“Torna-se indispensável para que o conhecimento e as atividades preventivas e educativas fortaleçam as redes sociais e comunitárias, de modo que consigam humanizar-se pelo diálogo e considerar as vicissitudes que permeiam as reveladas de direito, sendo o Poder Judiciário um propulsor de garantias de direitos”, concluiu a equipe.
Para a juíza Kerley Alcântara, o trabalho é relevante pois, nessas comunidades, ocorrem muitos casos de violência de natureza sexual. “Essas localidades têm uma eficácia policial bem pequena, o que dificulta a coerção. Temos meninas de 12 anos vivendo conjugalmente com um adulto, ou seja, crime de estupro naturalizado naquela comunidade, uma vez que há uma cultura desses relacionamentos precoces, retirando dessa criança/adolescente o direito a uma infância saudável. Muitas vezes, em razão desse “casamento”, são afastadas da escola, retiradas do convívio social decorrentes da própria infância”, explicou a magistrada.