Sangramento varicoso gastrointestinal: como tratar essa complicação?
Uma das complicações mais temidas da doença hepática crônica avançada (DHCA) é a hemorragia digestiva alta varicosa (HDA-V).
O consenso de Baveno VII, publicado no ano de 2021, trouxe algumas modificações de grande impacto sobre o tema, algumas das quais revisitamos sob a óptica do Dr. Jornal Mundial de Hepatologia publicado em fevereiro de 2024.
Qual o papel do gradiente de pressão hepática venosa?
A mensuração direita da pressão no sistema porta é a medida mais robusta para avaliar os resultados entre os indivíduos com portal de hipertensão. Entretanto, o acesso direto à circulação portal é muito invasivo e sujeito a riscos, como hemoperitônio. Portanto, uma pesquisa alternativa acessível, embora limitada à clínica, é o Grau de Pressão Hepática Venosa (GPHV).
O procedimento envolve, geralmente, a punção da veia jugular interna direita, por meio do qual é realizado o cateterismo sequencial do átrio direito, veia cava inferior e veia hepática direita.
Na veia hepática são realizadas duas medidas: (1) a pressão livre na veia hepática e (2) a pressão encunhada na veia hepática, essa última obtida a partir da insuflação de um balonete na extremidade distal do cateter. Pelo princípio dos vasos comunicantes, a pressão encunhada na veia hepática reflete a pressão sinusoidal hepática e, portanto, a pressão venosa portal.
GPHV=Pressão livre na veia hepática – pressão encunhada na veia hepática
GPVH (mmHg) |
Interpretação |
1 a 5 |
Normal |
≥ 10 |
Portal de hipertensão clinicamente significativa (HPCS) |
É possível predizer, de forma não invasiva, um HPCS?
A despeito da aplicabilidade do GPHV em pesquisa clínica, na prática é uma medida inviável. Com o objetivo de contornar a problemática, os métodos não invasivos têm ganho destaque, em especial a combinação entre os dados da elastografia hepática transitória (EHT) e a contagem de placas.
EHT (kPa) |
Placas (x 10³) |
Interpretação |
<10 |
Qualquer valor |
Baixa probabilidade de DHCP |
10 – 15 |
Sugere DHCA |
|
> 15 |
Alta probabilidade de DHCP |
|
<15 |
> 150 |
HPCS é perigoso |
15 – 20 |
<110 |
Risco de desenvolvimento de HPCS, com necessidade de avaliação adicional com EDA |
20 – 25 |
<150 |
|
> 25 |
Qualquer valor |
Indicativo de HPCS |
EHT: Elastografia hepática transitória; DHCA: Doença hepática crônica avançada; HPCS: portal de hipertensão clinicamente significativa; EDA: Endoscopia digestiva alta.
Como selecionar os pacientes para a prevenção primária do HDA-V?
O beta-bloqueador não seletivo (BBNS), com destaque para o carvedilol, deve ser instituído entre os indivíduos com portal de hipertensão clinicamente significativo (HPCS), expressamente por GPHV ≥ 10 mmHg ou elastografia hepática transitória ≥ 25kPa.
Além do BBNS, deve-se lembrar do papel primordial da reversão do fator etiológico (interrupção do etilismo ou resposta virológica sustentada na hepatite B ou C, por exemplo) no freamento da progressão ou mesmo reversão do portal hipertensão.
O mecanismo de ação do BBNS consiste em reduzir a frequência e o débito cardíaco pelo bloqueio dos receptores adrenérgicos beta-1 cardíacos, em concomitância com a promoção da vasoconstrição esplâncnica ao inibir os receptores adrenérgicos beta-2 vasculares.
A meta terapêutica consiste em reduzir o GPHV <12 mmHg ou em 20% em relação ao basal, desde que não implique em hipotensão arterial significativa ou outros eventos adversos. Como os dados anteriormente elencados são invasivos, podemos almejar uma frequência cardíaca (FC) de 55 bpm ou redução em 25% em relação à FC basal.
BBNS |
Dose inicial |
Dose máxima |
Carvedilol |
3.125 mg VO de 12/12h |
6,25 mg VO de 12/12h |
Propranolol |
10 mg VO de 12/12h |
160 mg VO de 12/12h |
BBNS: beta-bloqueador não seletivo. As doses devem ser reduzidas em 50% na presença de ascite.
A partir do momento em que é introduzida a profilaxia primária de HDA-V com BBNS, a endoscopia digestiva alta (EDA) seriada não é mais recomendada enquanto o paciente permanece compensado. As ligaduras das varizes esofágicas (LEVE) serão reservadas para as contraindicações ou intolerância ao BBNS.
A profilaxia secundária de descompensações da DHCA
Os marcadores de descompensação aguda da DHCA incluem, além do próprio HDA-V, os seguintes critérios:
- Ascite refratária (> 3 paracenteses de grande volume em 1 ano);
- Encefalopatia hepática recorrente;
- Desenvolvimento de peritonite bacteriana espontânea (PBE);
- Injúria renal aguda ou síndrome hepatorrenal;
- Icterícia.
Na profilaxia secundária de HDA-V, o tratamento recomendado é a combinação entre LEVE e BBNS, com preferência para o carvedilol. Entretanto, a progressão da DHCA muitas vezes traz limitações ao emprego da dose otimizada do beta-bloqueador, de forma que deve se considerar a redução da dose ou mesmo a suspensão diante de ascite grave, hipotensão arterial (sistólica <90 mmHg ou média <65 mmHg ) ou lesão renal aguda.
Na recorrência de HDA-V a despeito da terapia combinada otimizada, a principal alternativa terapêutica é o shunt portossistêmico transjugular intra-hepático (TIPS) recoberto por politetrafluoretileno (PTFE), com seleção criteriosa para minimizar o risco de encefalopatia hepática.
O tratamento agudo da HDA-V
O melhor cenário para o manejo do HDA-V, em razão de sua gravidade, é a terapia intensiva.
Os pacientes devem ser tratados com a posição do ABCDE, ganhando destaque a ressuscitação volêmica (preferencialmente com dois acessos venosos periféricos antecubitais) e o alvo de hemoglobina> 7-8 g/dL.
As drogas vasoativas de ação esplâncnica devem ser administradas prontamente e mantidas por três a cinco dias, a exemplo do octreotida (50 mcg em bolus, seguido por 50 mcg/h) e terlipressina (2 mg em bolus, seguido por 1-2 mg a cada 4-6 horas).
Os inibidores da bomba de prótons (IBPs), caso tenham sido prescritos antes da EDA, devem ser desprescritos na ausência de restrição clara, pois aumentam o risco de translocação bacteriana, PBE e outras complicações infecciosas.
A antibioticoterapia deve ser realizada de forma universal no HDA-V, sendo a primeira escolha a ceftriaxona 1g EV/dia por cinco a sete dias, com impacto positivo sobre a mortalidade.
A terapia nutricional deve ser iniciada nas primeiras 48 a 72 horas após o alcance da hemostasia. A profilaxia da encefalopatia hepática deve ser realizada com lactulose com alvo de duas a três exonerações passadas diárias.
A EDA deve ser realizada nas primeiras 12 horas após a administração, após a estabilização hemodinâmica, para minimizar as intercorrências anestésicas. Na ausência de contraindicações, recomenda-se a administração de eritromicina endovenosa (250 mg) 30 a 120 minutos antes do procedimento.
O método hemostático de escolha nas varizes esofágicas é a ligadura metálica (LEVE). O cianoacrilato é indicado nas varizes de fundo gástrico (IGV1), varizes gástricas isoladas (IGV2) e varizes esofagogástricas (GEV1 e GEV2).
Os casos de HDA-V refratários à terapia combinada (hemostasia endoscópica + análogos de somatostatinas) devem ser manejados com balão esofágico de Sengstaken-Blakemore ou stent esofágico metálico recoberto e autoexpansível. Os dois tratamentos de resgate citados devem ser entendidos como pontos para o TIPS e transplante hepático.
No HDA-V com recorrência precoce ou entre pacientes com Criança B7 a C14, pode ser considerado o TIPS pré-emptivo, nas primeiras 72 horas de admissão. Além do Child C15, outros critérios de futilidade do método a serem considerados incluem o MELD> 30 pontos, lactato arterial> 12 mmol/L ou ausência de perspectivas de transplante hepático em um curto prazo.
A radiologia intervencionista oferece ainda uma alternativa ao TIPS: a obliteração transvenosa retrógrada com oclusão por balão (BRTO), que exige a presença de shunts gastrorrenais com anatomia benéfica ao procedimento.
Mensagens práticas
- Um portal de hipertensão clinicamente significativa (HPCS) pode ser definido com base em testes não invasivos: elastografia hepática transitória e contagem de placas.
- A profilaxia primária de descompensações agudas da doença hepática crônica avançada (DHCA) é indicada na presença de HPCS.
- O betabloqueador não seletivo (BBNS) de escolha é o carvedilol, com dose inicial de 3,125 mg de 12 em 12 horas e alvo de 6,25 mg de 12 em 12 horas.
- A profilaxia secundária de hemorragia digestiva alta varicosa (HDA-V) deve ser realizada com a terapia combinada: BBNS e ligadura de varizes esofágicas (LEVE).
- O manejo agudo do HDA-V envolve uma ressurreição volêmica, com alvo de hemoglobina acima de 7 g/dL e emprego precoce de vasoconstritores espplâncnicos (octreotida ou terlipressina).
- A EDA deve ser realizada nas primeiras 12 horas após a administração, após a estabilização clínica e preferencialmente após 30 a 120 minutos da administração de eritromicina 250 mg por via endovenosa.
- Os vasoconstritores esplâncnicos devem ser desligados por três a cinco dias, quando darão espaço aos BBNSs.
- A recorrência precoce ou refratariedade clínica podem ser manejadas com balão de Sengstaken-Blakemore e stents metálicos esofágicos autoexpansíveis, entendidos como pontes para o shunt portossistêmico intra-hepático transjugular (TIPS) e transplante hepático.
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Autor
Graduação em Medicina em 2013 pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Residência em Clínica Médica (2016) e Gastroenterologia (2018) pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Residência em Endoscopia digestiva pelo HU-UFJF (2019). Preceptor do Serviço de Medicina Interna do HU-UFJF (2019).
- Garbuzenko DV. Conceitos contemporâneos de prevenção e manejo do sangramento por varizes gastroesofágicas em pacientes com cirrose hepática. Mundial J Hepatol 2024; 16(2): 126-134