95 dias. Esse é o tempo que separa a atuação do São Paulo contra a LDU, que custou vaga na Libertadores, do 2 a 1 no Fluminense que reafirma o Tricolor como melhor futebol do Brasil e favoritíssimo ao título brasileiro.
É muito sedutor pensar que tudo mudou de lá pra cá. Só que o elenco do São Paulo é o mesmo. O técnico é o mesmo. O diretor de futebol também. Não teve nenhuma mudança brusca ou fato novo. A única coisa que mudou é o tempo de trabalho, que teimamos em desrespeitar e não valorizar no Brasil.
O São Paulo pratica as mesmas ideias de jogo do início do ano. O que muda é que o time repetiu tanto que todo mundo aprendeu.
O treinador é a pessoa que indica como essa tarefa será. No caso do São Paulo, Fernando Diniz quer que a tarefa de levar a bola até o ataque seja feita com dois meias na linha dos zagueiros. Não importa se é o Luan, Tchê Tchê, poderia ser o Xavi e o Falcão também: a ideia dele é deixar os laterais à frente, a zaga mais ao lado e ter dois meias pensantes por dentro, com muita visão de jogo.
É o que Tchê Tchê e Hernanes fazem aqui, no empate de 2 a 2 contra o River Plate no Morumbi (um dos muitos jogos em que a torcida do São Paulo pediu a demissão de Diniz).
Início da construção das jogadas do São Paulo: dois meias por dentro, dois zagueiros pelos lados — Foto: Reprodução/Léo Miranda
Futebol não é coletivo? Então ação interfere na ação do companheiro. Isso se chama multidependência. Todo mundo executou a tarefa que Diniz quer, só que Hernanes demora a circular por dentro, nas costas da pressão do River, e a demora do faz Tchê Tchê levar a bola até o lado. Olha aí o lateral se aproximando, executando mais um pedaço da grande tarefa que é jogar bola…
Tempo de trabalho é importante porque futebol, no fim das contas, é uma atividade humana. Futebol não é simples, onde 22 pessoas chutam a bola até fazer o gol. Não basta juntar os melhores em cada tarefa – que são as posições – e esperar, magicamente, que o time vire o Bayern. Parece lógico e simples pensar dessa forma, e seria mais fácil assim, mas futebol é feito por pessoas. É preciso que a união dessas pessoas forme um time.
Quando falamos em time, uma palavra entra em jogo: processo. Organização. Método. Basicamente, uma série de coisas que cada um precisa fazer para que o todo atinja um objetivo. O que é futebol, se não um grande processo de levar a bola da defesa pro meio, chegar no ataque e finalizar? Ou de impedir que o outro lado chegue no gol, roubar a bola e recomeçar?
Se futebol é um jogo cheio de processos executados por pessoas diferentes, é preciso que cada um entenda essas etapas e como fazer cada tarefa. Isso demanda tempo. Demanda treino, derrota, repetição até virar algo automático.
Um lateral recua mais para receber o passe do zagueiro. Essa é a passagem de início para meio. — Foto: Reprodução/Léo Miranda
Depois que o lateral recebe a bola, a tarefa muda. Não é mais iniciar a jogada, é criar ela. O lateral recebe a bola, vira o corpo e irá criar a jogada aos companheiros. Sabe o que ele vê na frente dele? Uma falha de processo. Não uma falha técnica, não um erro do burro do técnico. Apenas uma falha natural de entendimento. Olha a posição corporal e local do campo dos companheiros. Não dá pra continuar a troca de passes, porque não há apoios (opções de jogo) para impedir que o River retome a posse.
Só que o resto do time não acompanha o lateral, e o São Paulo precisa retornar a bola — Foto: Reprodução/Léo Miranda
Está todo mundo mal posicionado – porque a galera não entendia que quando o zagueiro recebeu a bola lá na primeira imagem, era momento de Sara, Igor Gomes, Vitor Bueno e seja lá quem for sair da inércia e se movimentar para dar opção ao lateral que irá receber a bola. Se isso não acontece, o time tem que ficar tocando para trás. O torcedor fica irritado, com razão, mas não é a saída do técnico que mudará isso. É o tempo para todo mundo entender como se inserir no time.
Entendeu o por quê do Diniz gritar “movimenta, São Paulo”, em todos os jogos?
Contra o Botafogo, numa das melhores atuações do São Paulo, o time fez a MESMA COISA que contra o River. Mudou apenas o nome. Mas olha aí os dois meias por dentro, os zagueiros abertos e um lateral vindo dar opção de passe.
São Paulo fez a MESMA coisa que faz desde fevereiro contra o Botafogo — Foto: Reprodução/Léo Miranda
Contra o Fluminense, a mesma jogada, igualzinha, voltou a acontecer. É assim em todos os jogos do São Paulo com Diniz. Esse é o padrão de jogo que escutamos que um time não tem quando perde. Balela. O padrão sempre existe. O que muda é que ele nem sempre é executado em sua lógica interna.
Nada mudou. É o mesmo movimento de fevereiro, da Libertadores, contra o Bota e contra o Fluminense. — Foto: Reprodução/Léo Miranda
A mudança está justamente na execução. Diferente de agosto, o lateral recebe a bola e olha a diferença GRITANTE do time: todo mundo entendeu que precisa dar apoio pro lateral. Todo mundo virou o corpo e aproximou. Assim o time continua a tocar a bola, sem que o adversário consiga roubar. Não teve nenhuma mágica. Não teve mudança de jogador. Não teve nada além do poder do tempo, do treino e da repetição.
Olha a diferença do time quando o lateral, no caso Reinaldo, recebe a bola — Foto: Reprodução/Léo Miranda
É natural pedir a cabeça do técnico quando o processo não é executado. Afinal, ele é o responsável por tudo. O que a gente teima em esquecer é que o técnico só pode corrigir os erros se ele tem tempo. Não apenas ele: ninguém nasce sabendo. Só aprendemos quando passamos por uma situação e entendemos a consequência ruim dela. Aí fazemos diferente da outra vez para que a consequência seja positiva.
Melhores momentos: Fluminense 1 x 2 São Paulo pela 27ª rodada do Brasileirão 2020
Se você demite o técnico a cada derrota, ele não tem a chance de ver onde está o erro para corrigir. Já pensou se a professora fosse demitida a cada erro de alfabetização dos alunos? Futebol é processo porque é a soma dessas ações, dentro de uma organização para cumprir as etapas pra chegar ao gol (ou defendê-lo), que faz o time vencer. E para entender isso é preciso de tempo, de paciência, resiliência…
É por isso que tática é a coisa mais humana que existe. É ela que explica quem está ou não está dentro do processo.
É por isso que técnicos precisam ficar no cargo, mesmo nas derrotas.
Por quanto tempo? Não é exato. O mais racional a se pensar é que um treinador precise ficar uma temporada inteira. Do início ao fim do ano. Assim, o clube avalia todos os cenários possívels e vê se deu certo ou não. Vale pro Diniz, pro Guardiola, pro Abel Braga e pro Luxemburgo. Vale para Rogério Ceni no Flamengo, que já começa a ouvir a impaciência dos flamenguistas. Vale para Abel Ferreira independentemente dos resultados do Palmeiras no ano. Precisamos ser justos. TODO MUNDO precisa de tempo.
Se o clube demite pelo resultado, contrata pelo nome, depois demite pelo resultado e vai trocando quando perde, ele não dá a chance desses processo se completar. É importante que a contratação seja pensada também. Na maioria das vezes, o erro está na contratação que é feita de forma completamente errada. Quer exemplos?
O que o Corinthians queria ao contratar Tiago Nunes?
O que o Vasco queria ao contratar Ramon?
O que o Palmeiras queria ao contratar Luxemburgo?
Manter o técnico no cargo no momento de maior pressão, quando o torcedor o detesta, é confiar no processo. O São Paulo comprou a briga com base numa avaliação racional, muito calma e clara do trabalho dele. Quem explicou foi o próprio gerente executivo do clube, Alexandre Pássaro
Respeitou aquilo que há de mais humano, tão óbvio que nossa ignorância diária insiste em não ver: pessoas precisam de tempo para formarem um time. O fruto é a liderança merecida do Brasileirão.
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