Lei de Segurança Nacional: Por que lei criada na ditadura voltou a ser tão usada em 2020
Redigida durante a ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional (LSN), que lista crimes contra ‘a segurança nacional’ e a ‘ordem política e social’, está em vigor até hoje, mas foi usada muito pouco e pontualmente desde a redemocratização.
Nos últimos tempos, no entanto — e especialmente neste ano de 2020 — a LSN voltou com tudo. Ela tem sido evocada por diversos lados do espectro político para enquadrar desde grupos de extrema-direita que pediam a volta da ditadura militar até um cartunista que fez uma charge crítica ao presidente Jair Bolsonaro.
Na semana passada, o governo também ameaçou enquadrar na lei servidores que divulgassem informações discutidas no Ministério da Saúde, comandado interinamente pelo general Eduardo Pazuello. Os servidores foram obrigados a assinar um termo de sigilo que dizia qualquer vazamento poderia ser enquadrado na LSN.
Foi a segunda vez que o governo falou em Lei de Segurança Nacional na mesma semana. No dia 15, o advogado-geral da União, André Mendonça, havia dito que iria pedir uma investigação contra o cartunista Aroeira com base na LSN, por uma charge crítica ao presidente. No desenho, Bolsonaro aparecia pintando uma suástica nazista sobre um símbolo de pronto-socorro — uma crítica ao incentivo do presidente de que pessoas invadissem hospitais para filmar. Em apoio ao artista, dezenas de cartunistas repetiram o desenho.
Apoiadores do presidente também correm o risco de serem processados criminalmente com a base na mesma lei. No mesmo dia 15, foram presos com base na LSN a ativista Sara Giromini, também conhecida como Sara Winter, e outras cinco pessoas do seu grupo ‘300’, que admitiram carregar armas em acampamento bolsonarista.
Em abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a abertura de inquérito para apurar possível violação da LSN em atos em favor do presidente. Nos protestos, manifestantes pediam o fim do STF e a volta do AI-5, o ato institucional que endureceu a ditadura e autorizou uma série de medidas de exceção, permitindo o fechamento do Congresso, intervenções do governo federal nos Estados, prisões até então consideradas ilegais e suspensão dos direitos políticos dos cidadãos sem necessidade de justificativa.
Mas afinal, o que diz a Lei de Segurança Nacional o que foi que fez que uma legislação que havia praticamente caído em desuso desde o fim da ditadura militar voltasse com força em 2020?
Estigma da ditadura
A LSN em vigor hoje foi criada em 1983, no período de reabertura da ditadura militar, e é mais recente versão de uma série de legislações sobre a segurança interna do país.
A legislação estabelece crimes contra quem lesa ou coloca a perigo “a integridade territorial e a soberania nacional”, “o regime representativo e democrático”, “a Federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.
“O Brasil teve várias Leis de Segurança Nacional , em vários momentos históricos, nunca em momentos muito bons”, diz o criminalista Davi Tangerino, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas.
Segundo Gustavo Badaró, professor de direito criminal da USP (Universidade de São Paulo), a LSN e o conceito de “segurança nacional” foram usados durante o período militar para perseguir opositores do regime
“As leis de segurança nacional atribuíam à Justiça Militar a competência para julgar certos crimes, então civis contrários ao regime passaram a ser perseguidos e processados militarmente. O conceito de segurança nacional ficou bem marcado por esse cunho de perseguição na época da ditadura”, diz Badaró.
Segundo o jurista, isso explica por que, durante a maior parte dos mais de 30 anos desde a redemocratização, a LSN foi usada muito pontualmente.
“Ela nunca recebeu muita atenção pelo contexto. Politicamente ficou um conceito desgastado. A nova Constituição, de 1988, não reproduz esse termo, embora mantenha a preocupação com a segurança do país”, explica Badaró.
“A Constituição diz que considera graves crimes contra o Estado Democrático de Direito e que ação de grupos armados contra a ordem democrática é um crime inafiançável”, afirma.
Nas poucas vezes que a lei foi usada desde o fim da ditadura, como contra invasões do MST (Movimento dos Sem Terra) em 2000 e contra manifestantes em 2012 e 2013, seu uso sempre foi muito discutido e criticado.
Após a polêmica do uso contra o MST, em 2002, o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso criou uma comissão com juristas para criar um projeto de lei para substituir a LSN e incluir no Código Penal “crimes contra o Estado democrático de Direito”. Enquanto isso, a Câmara dos Deputados discutia a revogação da lei herdada da ditadura. Mas o projeto do governo não foi para frente e a revogação da LSN acabou nunca tramitando no Congresso.
Mais recentemente, em 2018, o uso da lei para enquadrar Adélio Bispo, que deu uma faca no então candidato à presidência Jair Bolsonaro, também iniciou discussões sobre seu histórico.
Ameaças à democracia
Depois de tantos anos sendo usada muito pontualmente, o que explica o retorno da LSN em 2020?
Segundo o constitucionalista Wallace Corbo, professor de direito da FGV-Rio, é o fato de estarmos em um ano de “crise da nossa democracia constitucional”.
“Crise não significa que está acabando, significa que é um ponto de inflexão profunda, em que as pessoas se veem na posição de pensar o que elas acham sobre o nosso sistema”, diz Corbo.
Em todo momento de crise democrática, diz Corbo, surgem dois caminhos possíveis: o da tentativa de ruptura, ou seja, golpe, como sugeriam os manifestantantes em favor da volta do AI-5, ou o caminho da tentativa de retomada.
Segundo Corbo, nesse contexto a LSN — que tem conceitos bem amplos — acaba sendo evocada por defensores de ambos os caminhos. Por um lado, diz ele, tem instrumentos que de fato podem ajudar a proteger a democracia. Por outro, diz, se servir para simples perseguição de opositores políticos, acaba minando os próprios princípios democráticos, como a liberdade de expressão.
“Então eu acho que o ressurgimento da LSN como esse instrumento amplo, que serve tanto para subversão quanto para a proteção do sistema. Então ela acaba estando vinculada a esses dois caminhos possíveis”, afirma Corbo.
“Do lado da proteção, da retomada do projeto constitucional, está esse uso contra esses movimentos de fake news, esses movimentos armados que pedem fechamento do STF, e do outro, do lado da ruptura, está essa tentativa do governo de negar princípios constitucionais”, diz o professor de direito constitucional.
Para Gustavo Badaró, o retorno é mais uma questão política do que jurídica, ligada em parte à conexão do governo Bolsonaro com militares.
“Em outros governos, essa ligação com a ditadura militar era um freio para o uso da lei”, afirma. “Mas o presidente é militar, não é curioso que um governo militar queira usar essa lei que ficou muito ligada com o regime.”
Badaró diz que vê com preocupação o uso da lei mesmo nos inquéritos abertos com autorização do STF para investigar manifestantes de extrema-direita que pediram fechamento do Congresso ou os integrantes do grupo ‘300’.
“É muito perigoso pelo histórico de como a lei foi utilizada você voltar a usá-la justamente em um momento em que a democracia está em crise”, diz o jurista.
“De o fato o grupo propõe golpe, mas a não ser que você tenha um grupo de militares que se aquartelaram e vão com tanques invadir o STF, e esteja de fato colocando em risco a democracia, me parece um exagero (usar a LSN)”, diz Badaró. “Por que amanhã pode contra ser jornalistas, ou quaisquer opositores políticos. Já temos na legislação comum crimes que são suficientes para coibir essas situações, crimes contra a honra, crimes de ameaça.”
Para Davi Tangerino, o uso da lei contra manifestantes contrários à democracia é justificável, mas ao ameaçar processar um cartunista e servidores de saúde, o governo “faz uma confusão” entre o que é assunto de Estado e o que é questão de segurança nacional.
“É característica dos governos autoritários tratar todos os assuntos como sendo de segurança nacional — não é porque é um assunto de Estado, como as informações do ministério da Saúde, que é questão de segurança nacional”, diz Tangerino. “Políticas públicas são por regra auditáveis, é preciso haver um controles, a máquina pública é para se controlada pelo o povo.”
‘Necessária e ultrapassada’
Por ser anterior à Constituição de 1988, explica Wallace Corbo, nem tudo o que está nela continua válido.
“A lógica é que a Constituição recepciona as leis anteriores, e o STF decide o que é compatível e o que não é”, explica. “A Lei de Imprensa (que permitia a censura, por exemplo), foi revogada.”
Mas nem todas as leis são totalmente compatíveis ou totalmente incompatíveis – é o caso da LSN.
“A lei é um resquício de um período autoritário e precisa passar por uma filtragem constitucional”, explica Corbo, o que pode acontecer através de um processo que questione a própria lei ou através de julgamentos em casos concretos.
O constitucionalista afirma que uma lei que trate da defesa do regime democrático é muito necessária e que os primeiros 12 artigos da lei — que criminalizam, por exemplo, ataques à instituições com uso de força paramilitar — podem ser úteis na defesa da democracia.
“Todo regime democrático precisa ter instrumentos para se proteger de golpes, instrumentos para proteger esse sistema”, diz Corbo. “Nos anos antes do nazismo na Alemanha, o constitucionalista Karl Loewenstein dizia: ‘ ou a gente usa nossas leis de segurança para nos protegermos contra o nazismo, ou vamos ter problemas’.”
No entanto, diz Corbo, os últimos artigos da LSN não servem a esse propósito e começam a entrar numa seara que gera um potencial problema – como quando trata como questão de segurança críticas feitas ao presidente da República.
“Isso viola totalmente o princípio de liberdade de expressão guardado pela Constituição. Democracia significa ter possibilidade fazer oposição”, diz Corbo.
Davi Tangerino reforça que ameaçar usar a charge contra um cartunista é um exemplo de uso da lei que fere a Constituição. No caso do artista Aroeira, foi evocado artigo 26 da lei, que estabelece como crime caluniar ou difamar o Presidente da República, o Senado, a Câmara dos Deputados ou o STF.
“A arte e a crítica política não são calúnia nem difamação. E mesmo que fosse um desses crimes contra o presidente, não é uma questão de segurança nacional”, afirma Tangerino.
Um dos problemas da LSN que acabam dando margem a esses usos, dizem os juristas, são seus conceitos muito amplos.
“O problema da atual LSN é que figuras criminosas muito vagas que dão uma certa abertura de interpretação”, afirma Davi Tangerino. Ele explica que isso fere o princípio jurídico da taxatividade no direito penal — que um crime precisa estar descrito de forma clara e precisa.
O uso do termo “grupos paralimitares” na LSN é um exemplo, diz Wallace Corbo.
“É o que a gente chama de conceito jurídico indeterminado. Serve para um grupo armado que tenta invadir o Congresso, ok. Mas e índios com flechas que ocupam um prédio da Funai? Eles claramente não são uma ameaça à democracia, mas essa lei, sem uma definição mais específica, abre margem para uma interpretação totalmente antidemocrática que pode ser usada para perseguir os índios.”
“Há um certo consenso jurídicos nos últimos 15 ou mais anos, de que uma nova lei é necessária”, diz Corbo.
Badaró concorda. “Vejo com profundo pesar que vivamos uma situação em que se pense que o instrumento jurídico para resolver um problema seja essa lei que é resquício da ditadura. Se as instituições funcionassem dentro de uma normalidade democrática, isso sequer seria cogitado.”
R7